A união indissolúvel, celebrada por um sacramento, substituiu
antigos costumes de poligamia, provocando grande mudança nos hábitos
europeus. Em 392, o cristianismo foi proclamado religião oficial. Entre
965 e 1008 eram batizados os reis da Dinamarca, Polônia, Hungria,
Rússia, Noruega e Suécia.
Casamento de Felipe da Macedônia com Olimpia. Miniatura do séc. XV
Desses dois fatos resultou o formato do casamento, em princípios do ano
1000, com uma face totalmente nova. Durante o Sacro Império Romano
Germânico - que sucedeu ao desaparecido Império Romano -, dirigido por
Oto III de 998 a 1002, houve uma fabulosa transformação das sociedades
urbanas romanas e das sociedades rurais germânicas e eslavas. As uniões
entre homens e mulheres eram, então, o resultado complexo de renitências
pagãs, de interesses políticos e de uma poderosa evangelização.
"Amor: desejo que tudo tenta monopolizar; caridade: terna unidade; ódio:
desprezo pelas vaidades deste mundo." Esse breve exercício escolar,
escrito no dorso de um manuscrito do início do século XI, exprime bem o
conflito entre as concepções pagã e cristã do casamento. Para os pagãos,
fossem eles germânicos, eslavos ou ainda mais recentemente vikings
instalados na Normandia desde 911, o amor era visto como subversivo,
como destruidor da sociedade. Para os cristãos, como o bispo e escritor
Jonas de Orléans, o termo caridade exprimia, com o qualificativo
"conjugal", um amor privilegiado e de ternura no interior da célula
conjugal. Esse otimismo aparecia em determinados decretos pontificais,
por meio de termos como afeto marital (maritalis affectio) ou amor
conjugal (dilectio conjugalis). Evidentemente, o ideal cristão era abrir
mão dos bens deste mundo desprezando-os, o que constituía um convite ao
celibato convencional.
A Europa pagã, mal batizada no ano 1000, apresentava portanto uma
concepção do casamento totalmente contrária à dos cristãos. O exemplo da
Normandia é ainda mais revelador, por ser muito semelhante ao da Suécia
ou da Boêmia. Os vikings praticavam um casamento poligâmico, com uma
esposa de primeiro escalão que tinha todos os direitos, e com esposas ou
concubinas de segundo escalão, cujos filhos não tinham nenhum direito, a
menos que a oficial fosse estéril, ou tivesse sido repudiada. As
cerimônias de noivado organizavam a transmissão de bens, mas não havia
casamento verdadeiro a não ser que tivesse havido união carnal. Na manhã
da noite de núpcias, o esposo oferecia à mulher um conjunto muitas
vezes bastante significativo de bens móveis. Ele era chamado de presente
matinal (Morgengabe), que os juristas romanos batizaram de dote.
Portanto, o papel da esposa oficial era bem importante, sobretudo se ela
tivesse muitos filhos, já que o objetivo principal era a procriação.
Essas uniões eram essencialmente políticas e sociais, decididas pelos
pais. Tratava-se de constituir unidades familiares amplas, no interior
das quais reinasse a paz. Por isso, as concubinas de segundo escalão
eram chamadas de Friedlehen ou Frilla, ou seja, "cauções de paz". Na
verdade, elas vinham de famílias hostis de longa data. A partir do
momento em que o sangue de ambas as famílias se misturava, a guerra já
não era mais possível. Assim, as mães escolhiam as esposas dos filhos,
ou os maridos, das filhas, sempre nos mesmos grupos clássicos, a fim de
salvaguardar essa paz. Se uma esposa morresse, o viúvo se casaria com a
irmã dela. Dessa forma, pouco a pouco as grandes famílias tornavam-se
cada vez mais chegadas por laços de sangue (consangüinidade), pela
aliança (afinidade) e, finalmente, completamente incestuosas.
Acrescentemos a esse quadro as ligações entre os homens, a adoção pelas
armas, o juramento de fidelidade e outras ligações feudais que
triunfaram no século X como um verdadeiro "parentesco suplementar",
segundo a expressão de Marc Bloch, e teremos a prova de que esses
casamentos pagãos não deixavam nenhum espaço livre para o sentimento.
Amor subversivo
Assim, quando o amor se manifestava, ele só podia ser adúltero, ou
assumir a forma de um estupro, maneira de tornar o casamento
irreversível, ou de um rapto mais ou menos combinado entre o raptor e a
"raptada", a fim de ludibriar a vontade dos pais. Nesses casos o amor
era efetivamente subversivo, uma vez que destruía a ordem estabelecida.
Ele se tornava sinônimo de morte e de ruína política, como prova o
romance, de fundo histórico verdadeiro, Tristão e Isolda, transmitido
oralmente pelo mundo europeu de então - celta, franco e germânico.
Tristão, sobrinho do rei e seu vassalo, cometeu ao mesmo tempo incesto,
adultério e traição para com o rei Marco, o marido de Isolda. Aliás, ele
mesmo diz, após seu primeiro encontro: "Que venha a morte". Nas
sociedades antigas, obcecadas pela sobrevida, a vontade de potência, de
poder, era mais importante do que a vontade de prazer, pois aquelas
tribos de imensas famílias não conheciam nenhuma limitação
administrativa ou externa.
Esse quadro deve ter sido abrandado pelo fato de eles terem estado em
contato com países cristãos, ou povos de regiões mergulhadas no
cristianismo, como por exemplo os normandos batizados do século X. Em
decorrência, duas estruturas coexistiam, mais ou menos confundidas. Por
volta do ano 1000, o bispo da Islândia teve muita dificuldade para
separar um chefe de tribo, já casado, de sua concubina, especialmente
porque ela era sua própria irmã - fato que sustentava a opinião de que
seu irmão, o bispo, não passava de um tirano. Nos séculos X e XI, os
duques da Normandia tinham dois tipos de união, regularmente: uma esposa
oficial, franca e batizada, e uma ou várias concubinas.
Guilherme, o Conquistador, que tomou a Inglaterra em 1066, tinha o
codinome de bastardo, por ter nascido de uma união desse tipo. À entrada
de Falésia, seu pai, Roberto, o Demônio, teve a atenção chamada por uma
jovem que, no lavadouro da cidade, calcava a roupa com os pés, nua como
suas companheiras de tarefa, para melhor sovar a roupa. Naquela mesma
noite, com a autorização de seu pai, Arlette, a jovem, se viu no quarto
do duque, usando uma camisola aberta na frente, "a fim de que", nos diz o
monge Wace, que contou a história, "aquilo que varre o chão não possa
estar à altura do rosto de seu príncipe". Esses amores "à dinamarquesa"
demonstram que as mulheres eram livres, com a condição de aceitar uma
posição secundária.
Essa duplicidade de situação num mundo ocidental oficialmente cristão,
mas ainda pagão, complicou-se quando as mulheres conquistaram poder,
algo facilitado pela matrilinearidade das origens germânicas. Algumas
incentivavam os maridos a se proclamarem reis, por serem elas de origem
imperial carolíngia. Castelãs, senhoras de grandes propriedades, ou
mulheres de alta nobreza, elas utilizavam o casamento como trampolim
para sua ambição. Em Roma, Marozia (ou Mariuccia) foi mãe do papa João
XI, filho de sua ligação com o também papa Sérgio III. Viúva do primeiro
marido, Guido da Toscana, meio-irmão do rei da Itália, Hugo, ela
convidou este a se casar com ela. Mas Alberico II, seu filho do primeiro
casamento, expulsou do castelo de Santo Ângelo onde foram celebradas as
núpcias, aquele intruso manipulado por sua mãe.
Punição para a libido
Aos olhos de inúmeros escritores eclesiásticos, como o bispo Ratherius
de Verona, a libido feminina era perigosa e devia ser reprimida
severamente. O fato de que velhos países como a Espanha, a Itália e o
reino dos Francos, embora cristãos havia já cinco séculos, não tivessem
ainda integrado a doutrina do casamento - a ponto, por exemplo, de o rei
Hugo ter tido duas esposas oficiais e três concubinas - prova o quanto
essa doutrina estava na contramão de seu tempo. E contudo ela fora
claramente afirmada e repetida desde que Ambrósio declarara em 390 que
"o consentimento faz as bodas". A isso, o Concílio de Ver acrescentara,
em 755: "Que todas as bodas sejam públicas" e "Uma única lei para os
homens e mulheres".
Reclamar a liberdade do consentimento dos esposos e a condição de
igualdade do homem e da mulher era utópico, sobretudo numa sociedade
romana patriarcal. Todavia, progressos importantes ocorreram no século
X, graças à repetição da apologia do casamento, símbolo da união
indissolúvel entre Cristo e a Igreja. Após a atitude irredutível do
arcebispo Hincmar e do papa Nicolau I, o divórcio de Lotário II por
repúdio a sua esposa Teutberga - devido a sua esterilidade - tornou-se
impossível após 869, ano de sua morte. Incompreensível para os
contemporâneos, o casamento não se baseava somente na procriação. A
aliança era mais importante do que um filho. Mais do que ninguém, longe
dos discursos sobre a superioridade da virgindade, Hincmar havia
demonstrado que um consentimento livre sem união carnal consecutiva não
era um casamento. Ele prefigurava assim a noção de nulidade instituída
pelo decreto de Graciano, em 1145. Em decorrência, os rituais, como
escreveu Burchard de Worms por volta do ano 1000, traduziam no nível da
disciplina do casamento a doutrina otimista dos moralistas carolíngios.
A união carnal, conseqüência do consentimento entre um homem e uma
mulher (e não várias), é o espaço de santificação dos esposos. O ideal
de monogamia, de fidelidade e de indissolubilidade tornou-se tanto mais
possível porque no final do século X desapareceu a escravidão de tipo
antigo, nos países mediterrâneos. Um novo espaço se abria para o
casamento cristão, graças ao surgimento do concubinato com as escravas,
que não tinham nenhuma liberdade. Essa foi também a época em que as
determinações dos concílios tornaram obrigatória a validade do casamento
dos não libertos.
Mas um outro combate chegava a seu ponto culminante no ano 1000: a
proibição do incesto. Iniciada a partir do século VI e quase
bem-sucedida na Itália, na Espanha e na França, essa interdição
enfrentou contudo forte oposição na Germânia, na Boêmia e na Polônia.
Proibidos em princípio até o quarto grau entre primos irmãos, os
casamentos de consangüinidade e de afinidade foram punidos, e os
culpados separados. Mais tarde, a partir de Gregório II (715-735), a
proibição foi estendida ao sétimo grau (sobrinhos à moda da Bretanha),
assim como aos parentes espirituais (padrinho e madrinha): não haveria
mais aliança a não ser com estranhos, com quem fosse outro (Deus ou o
próximo de sexo diferente), mas de modo algum com aquele ou aquela com
quem já existisse um tipo de ligação.
As conseqüências sociais de tal doutrina foram incalculáveis. Ela
obrigou cada um a procurar um cônjuge longe de sua aldeia e de seu
castelo. Acabou por destruir as grandes famílias, de dezenas de pessoas,
que viviam sob o mesmo teto, e por favorecer a formação de um grupo
nuclear, do tipo conjugal. Ela suprimiu, assim, as sucessões
matrilineares e a escolha dos esposos pelas mulheres. A exogamia
tornou-se obrigatória. A Europa se abriria para o exterior.
Elogio da virgindade
Na Alemanha, desde os concílios de Mogúncia, em 813, e de Worms, em 868,
os casos de casamentos incestuosos mantidos pela obstinação das
mulheres eram numerosos. Na Boêmia, o segundo bispo de Praga, Adalberto,
grande amigo do imperador Oto III, havia conseguido, em 992, um edito
público que o autorizava a julgar e separar os casais incestuosos. Foi
um insucesso tão retumbante que ele se desgostou para sempre de sua
tarefa episcopal. Preferiu ir evangelizar os prussianos, que o
martirizaram em 23 de abril de 997.
A dinastia dos Oto, que havia restaurado o império em 962 na Alemanha e
na Itália, nem por isso deixou de apoiar a Igreja em sua empresa de
transformação e cristianização. E suas esposas deram o exemplo, já que
Edite (946), Matilde (968) e Adelaide (999) foram consideradas santas.
Os clérigos que relataram suas vidas, em particular a de Matilde,
insistem não na viuvez ou nos atos de fundação de mosteiros, mas sim no
papel de esposa e mãe. Sua santidade provinha essencialmente do
casamento e do papel de conselheira, junto a seu imperial esposo. A
leitura dos ofícios de passagens da vida de santa Matilde não teve uma
influência desprezível sobre as audiências populares.
Se a Alemanha foi então uma frente pioneira na cristianização do
casamento, não foi bem esse o caso do reino dos francos. Ema, esposa
traída do duque da Aquitânia, Guilherme V, vingou-se de sua rival
mandando que ela fosse violada por toda sua guarda pessoal. Berta, filha
do rei da Borgonha, mal tendo enviuvado, pousou seu olhar sobre o jovem
Roberto, filho de Hugo Capeto, para fazer um casamento hipergâmico.
Esse exemplo é revelador. A legislação da Igreja acerca do casamento
cristão ia de encontro à mentalidade da época. E no entanto o amor
conjugal de caridade (dilectio caritatis) começava a sobressair ao amor
de posse (libido dominandi). Por volta do ano 1000, a expansão urbana e o
início do desbravamento e da cultura dos campos permitiram que a
família nuclear monogâmica se multiplicasse. As células rurais foram
destruídas pela necessidade de ir buscar um cônjuge mais longe. Somente a
nobreza e as famílias reinantes mais antigas resistiram, fechadas em
suas relações feudais, ao contrário dos recém-chegados ao poder, os Oto,
que acolheram e adotaram a doutrina cristã como uma liberação e se
lançaram com ousadia na direção do leste, para além do rio Elba, a nova
fronteira da expansão européia.
Dessa forma, da concepção do amor como subversivo e criador de morte
passamos à de um amor construtivo, promotor de vida. O desejo foi
integrado no casamento com a união carnal, espaço de gozo mútuo. A
procriação tornou-se um bem do casamento, entre outros. A poligamia
desapareceu. A publicidade do casamento se instalou. As proibições de
incesto permitiram que se descobrisse a necessidade de alteridade e a
afirmação da diferença sexual como força de construção. Esse momento de
otimismo e de vitória sobre o amor de morte pagão, à moda de Tristão,
explica o elã prodigioso da Europa no início do ano 1000. Mas ele não
iria além do final do século XI. Também por volta do ano 1000, as
diatribes de São Pedro Damião e Ratherius de Verona contra o casamento
dos padres anunciavam um outro combate que terminaria na reforma
gregoriana e no triunfo do celibato convencional.
Em conseqüência, o elogio da virgindade passou a ser mais e mais
preponderante, a ponto de fazer triunfar uma visão pessimista do
casamento. Tanto isso é verdade que a história do casamento cristão é
feita de alternâncias entre sucessos e crises.
(Fonte: Curiosidades - uol)