Química e Arte |
O papel do químico na área de restauração e conservação do patrimônio cultural
A associação entre química e arte pode parecer um pouco inusitada se considerada sob o olhar do homem contemporâneo. Com os rumos tomados pelas ciências nos séculos XIX e XX, a química foi incorporada no conjunto das ciências exatas com a percepção de que tenha pouco ou nada a ver com a arte, a qual seria ligada exclusivamente à imaginação e à criatividade – como se a criação artística e o raciocínio exato fossem habilidades humanas incompatíveis entre si. Mas, pensando bem, percebemos que esta separação estabelecida no imaginário coletivo nem sempre correspondeu à realidade, já que no passado era normal os artistas, pensadores e filósofos transitarem com desenvoltura tanto pelas atividades “exatas” (engenharia, alquimia, astronomia) como pelas chamadas belas artes. Um exemplo emblemático é o do Leonardo da Vinci, a quem o simples atributo de engenheiro ou de pintor ficaria muito limitado visto o grande número de obras artísticas e técnicas deixadas por ele como legado, na prática ou no papel.
Pensar
que o exercício da criatividade artística dispensa o conhecimento das
propriedades dos materiais e das técnicas para o seu manuseio é um
equívoco. É impensável supor que os pintores não precisem saber misturar
os pigmentos inorgânicos (alguns dos quais têm nomes bem químicos, como
amarelo de cádmio, óxido verde de cromio ou branco de chumbo) com os
ligantes, nem que possam se dar ao luxo de desconhecer e saber ajustar o
processo de secagem dos diversos óleos naturais (ou sintéticos) e das
resinas usadas como vernizes. Criar obras de arte requer matéria e a
capacidade de usá-la a serviço da criatividade. Aliás, pesquisas com
algumas das técnicas mais modernas de análise estão revelando a
habilidade singular de alguns pintores do passado no domínio da arte de
fabricar e manusear as tintas partindo dos mais diversos tipos de
substratos visando criar os efeitos plásticos desejados. Incrivelmente,
até os nossos mais distantes antepassados que deixaram suas
manifestações artísticas pintadas na rocha das cavernas parece que
lançaram mão de estratagemas dignos de um químico moderno no desenho das
pinturas rupestres.
Saber se aprofundar nas propriedades da
matéria e entender como controlá-las é importante até mesmo no caso das
formas menos palpáveis de arte, como a música. Alguns construtores de
instrumentos musicais, como violinos ou órgãos de tubos dos séculos XVII
e XVIII, foram grandes mestres e moldaram instrumentos únicos
apreciados até hoje também por terem sido grandes conhecedores das
madeiras, dos metais e dos vernizes.
Que a química tenha um papel
fundamental na evolução das artes plásticas é, em suma, algo que
dificilmente pode ser questionado: sirva ainda como último exemplo a
revolução representada pelo surgimento dos polímeros sintéticos. Não
somente essa inovação abriu as portas para a introdução de inúmeros
novos materiais plásticos e técnicas de pintura (por exemplo, o
acrílico) sem os quais não existiria boa parte da arte contemporânea,
como a química estimulou um maior aproveitamento de polímeros naturais,
proteínas e fibras vegetais.
Um aspecto que cabe frisar sobre as
relações entre a química e os bens culturais é a contribuição desta
ciência no processo de restauração e preservação de obras de arte.
Trata-se de uma nova área específica de atuação que vem crescendo,
ganhando cada vez mais reconhecimento e oferecendo oportunidades de
inserção para os profissionais da química. Em alguns países, onde a
percepção da importância do patrimônio cultural se impôs mais cedo, como
a Inglaterra, esta visão já está bem consolidada. Foi um cientista
inglês, Garry Thomson, que escreveu o primeiro livro de larga difusão
que explica como gerenciar os fatores ambientais dos museus para
otimizar a conservação dos objetos neles conservados. A primeira edição,
de 1978, mostra como a National Gallery de Londres já tinha uma longa
tradição de preocupação com a qualidade dos ambientes de conservação e
estratégias cientificamente fundamentadas para melhorar suas
características. Entre os anos 80 e 90 esta visão se expandiu em todo o
planeta e hoje a restauração e a preservação de obras de arte são
realizadas em praticamente todos os países do mundo, inclusive o Brasil.
Atualmente existe uma clara distinção entre restauração, quando se tenta reverter um processo de degradação, e preservação,
em que se busca evitar o dano com medidas preventivas. Nesse contexto, é
importante mencionar a nova tendência voltada para estudar o efeito dos
poluentes atmosféricos nas obras de arte. Os poluentes podem penetrar
nos museus vindos do ar externo ou ainda ser gerados diretamente dentro
dos espaços de conservação, por exemplo, emitidos pelos materiais de
construção ou por produtos de limpeza. O químico não somente é o
profissional mais preparado para detectar a presença destas substâncias
no ar, como também para prever e estudar seus efeitos nos diversos tipos
de materiais, como tintas, metais, papel, madeira, fibras naturais e
artificiais, e ainda propor soluções para evitar a degradação das obras
de arte.
Os químicos podem atuar na
caracterização dos materiais: a composição de uma liga pode ter papel
fundamental no risco de corrosão de um objeto metálico; pigmentos
distintos respondem de formas variadas aos estímulos externos; a
restauração de um quadro pode requerer a identificação das tintas
originais utilizadas ou, ainda, o esclarecimento da paleta de uma
pintura (conjunto dos pigmentos originais utilizados pelo artista) que é
certamente uma ferramenta importante para melhorar o conhecimento da
origem e da trajetória de uma determinada obra. As investigações podem
ser realizadas nos artefatos originais ou serem desenvolvidas em corpos
de prova. Mas, de qualquer forma, todo e qualquer estudo quase sempre
depende do emprego de técnicas de análise e hoje a disponibilidade de
modernas tecnologias, como os lasers, determinou um enorme avanço nessa
área. Por exemplo, a tecnologia trouxe a possibilidade de se realizar
diversos tipos de exames dos materiais de forma não destrutiva ou não
invasiva, o que é vital quando se lida com objetos únicos como estes.
Nisso, o Brasil tem mantido uma posição de destaque no contexto
internacional, em áreas como a espectroscopia Raman, a análise elementar
ou ainda as relações entre ambiente, poluentes e obras de arte.
Uma
área de pesquisa e desenvolvimento particularmente forte, inclusive na
Europa e na América Latina, são os estudos de arqueologia, etnografia e
arte rupestre em que a análise de peças produzidas por populações
indígenas tem um significado particular. Aqui, a contribuição do químico
em entender a composição dos materiais e os processos ocorridos com
eles ao longo do tempo pode ajudar a desvendar aspectos culturais,
religiosos e antropológicos.
O profissional para este tipo de
atuação precisa ter uma sólida formação e profundos conhecimentos de
química (química orgânica e inorgânica, química analítica, técnicas
instrumentais, espectroscopia e fotoquímica), mas necessita também
desenvolver outras habilidades, como a capacidade de interagir e
dialogar com profissionais com outras formações para extrair elementos
para a interpretação de seus dados e o interesse em lidar com pessoas e
instituições, inclusive de outros países.
Prof. Andrea Cavicchioli
Escola de Artes, Ciências e Humanidades - USP Leste
Revisão: Prof. Antonio Carlos Massabni
Unesp-Araraquara
(Fonte: CRQ/IV)
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