ABC do CDC
por Rizzatto Nunes
A doença das compras compulsivas se alastra
quinta-feira, 5 de dezembro de 2019
Volto
ao tema do vício, que é uma doença de há muito detectada e tratada
terapeuticamente e que pode atingir qualquer pessoa, independentemente
de classe social, condição econômica e formação intelectual.
Há
vícios de todo tipo e um específico ligado às compras, contemporâneo e
fruto da sociedade capitalista em que vivemos: a oneomania (também se
escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania
de comprar" e, também, é utilizada para identificar os compradores
compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como um viciado e tem
atitudes parecidas com as de qualquer um deles.
Mas, veja leitor, que interessante: a pessoa compradora compulsiva não é aquela que se satisfaz com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ela pode adquirir qualquer coisa que lhes surja pela frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento
da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser
abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra gerará
satisfação.
O
problema para identificar a doença está em que, naturalmente, essa
pessoa é uma consumidora típica e, portanto, frequenta os mesmos lugares
que as demais. Daí, ela acaba comprando irrefreadamente, mas os objetos
são aqueles que todos compram, inclusive ela mesma quando não tinha a
crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, joias etc. e com isso,
às vezes, nem ela, nem as demais pessoas que estão à sua volta percebem
o problema. Parece apenas que ela é exagerada ou uma espécie de
colecionadora.
O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing,
com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução.
Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo.
Como
eu costumo dizer, parafraseando Descartes: "Consumo, logo existo".
Somos uma sociedade de consumidores e, infelizmente, as pessoas são
vistas, avaliadas, medidas por aquilo que possuem, ostentam ou podem
adquirir.
E,
no século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de
facilitação às compras. A expansão do sistema financeiro internacional e
o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção
industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se
fabrica.
Além
disso, o sistema capitalista compreendeu bem uma das questões de ordem
psicológica, que poderia ser capaz de frear as vendas. Falo do dinheiro
que se gasta quando se compra. Se uma pessoa tivesse que pagar em papel
moeda toda e qualquer compra, saberia, ao menos quando carregasse as
moedas, "o peso" de sua perda. Ela estaria trocando, por exemplo, alguns
maços de papel moeda por um terno, um sapato ou uma bolsa. Trocaria
muitos maços de dinheiro por uma viagem ao exterior e entregaria uma
mala cheia dele para adquirir um automóvel. A pessoa "enxergaria" o
quanto estava gastando.
Mas,
o comprador não percebe isso. Durante muitos anos, ele simplesmente
passava um cheque, que representava o dinheiro e que, sintomaticamente,
ele nem possuía concretamente, pois estava no banco. Quer dizer, estava
num número numa conta. Nem no cofre da agência bancária estava.
O
sistema financeiro foi ampliando essa ocultação. Num primeiro momento,
então, como disse, o consumidor passava um cheque, que representava o
dinheiro que ele possuía. Mas, depois, por conta do sistema de créditos,
ele passava o cheque sem nem mesmo ter o dinheiro. Com o cheque
especial, o crédito que estava à disposição funcionava como uma tentação
dizendo "me usa que eu te satisfaço".
Isso
é tão verdadeiro, que, com a "evolução" do sistema capitalista e seus
modos de estímulo para as compras e controle dos consumidores, o cheque
especial, que no início tinha de ser solicitado, passou a ser colocado
na conta corrente -- acoplado à ela --, sem que o cliente pedisse. Fica
lá, virtualmente, como uma possibilidade. Na realidade, uma provocação
ao consumo.
Mudou
mais ainda. O cheque está desaparecendo. O sistema de cartão de crédito
é hoje um outro fortíssimo estímulo às compras. Ele é, digamos, assim,
mágico. Um pedaço de plástico que dá acesso aos bens materiais
existentes no mercado. Com ele se pode, quase que literalmente, adquirir
tudo o que existe. Aliás, o usuário do cartão nem precisa ter dinheiro.
Na
atualidade, com o espetacular incremento da web/internet e dos
aplicativos, não só as compras tornaram-se instantâneas e feitas de
dentro das casas, como os pagamentos também. As transferências bancárias
online, os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos
os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica,
até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc., tudo é feito
rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem
precisa mais participar: é o sistema que age por ele.
Tudo
isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Ele não se dá
conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento
constante.
Logo,
o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer um
mais ou menos avisado, já que as armadilhas estão muito bem engendradas.
Assim,
como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição
de vigilância de uns sobre outros: é importante, por exemplo, que as
pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e
endividamento dos demais, para tentar detectar a doença.
Um
sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador
compulsivo adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar
por coisas que ele não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas
continua comprando. O compulsivo gasta todo seu salário, estoura o
limite do cartão de crédito e do cheque especial e até faz empréstimos
apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta.
É
claro que, se a oneomania for de uma pessoa de posses, com liberdade
para gastar, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará
produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize e sem se endividar.
Encerro
dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou
que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em várias
cidades brasileiras os grupos de auto-ajuda intitulados "Devedores
Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", e
que muito ajudam os doentes. Basta uma consulta à internet para ter
acesso a essas boas associações. O tratamento com psicoterapia é também
recomendado (Migalhas - Dez/19)
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