Meritocracia – sim ou não?
Publicado em 24.11.2014
Artigo de Mustafá Ali Kanso
Todos que acompanharam os debates presidenciais na TV na ocasião das eleições desse ano ouviram repetidas vezes o termo meritocracia e sua importância nos destinos do país e também ouviram ad nauseam diversos argumentos — a favor e contra.
Terminadas as eleições, paixões arrefecidas — muitos que assistiram ao largo a troca de farpas e ofensas num clima de final de campeonato agora se pergunta:
Mas afinal o que é mesmo meritocracia? Será que é a melhor forma de gestão?
Tem-se que o termo foi cunhado pelo sociólogo Michael Young em 1958 em sua obra “Rise of the Meritocracy” (A Ascensão da Meritocracia numa tradução livre);
Em sua obra, o neologismo composto pela conjugação do latim meritus (mérito) com o grego cracia (poder) quer significar a caracterização de um sistema de governo ou gestão que utiliza o mérito individual para a ascensão social e política.
Num resumo, as posições hierárquicas, sejam políticas, econômicas e/ou sociais são conquistadas com base no merecimento individual, no estilo “fazer por merecer” e a escalada para o sucesso é o resultado da conjugação dos valores individuais como empenho, esforço, capacidade e competência.
Young, criou em sua obra uma sociedade distópica que num futuro não muito distante justificava a exploração das camadas mais humildes da população pelo critério do QI associado ao esforço, alardeando que só era pobre o “menos capaz” e o “indolente” haja vista que a sociedade se dizia oferecer as mesmas oportunidades para todos, o que obviamente não era verdade.
Nessa obra, tal sociedade valorizava extensivamente a competição calcada em dois critérios: o coeficiente de inteligência (QI) e o esforço, daí o caráter pejorativo do termo mérito num sentido diferente do comum ou daquele usado pelos defensores da meritocracia.
Para estes, mérito quer significar em tese a conquista de posições devido ao emprego da habilidade, inteligência e esforço.
Daí surgir a crítica mais efetiva feita à meritocracia que é a ausência de um método que possa mensurar com segurança e equanimidade a aplicação de tais critérios nessa seleção.
Ou seja quem vai classificar o mais hábil, o mais inteligente e o mais esforçado e quais critérios e quais métodos serão utilizados nessa classificação?
E o questionamento mais impertinente:
Será que o medidor é fiel e a régua utilizada é justa?
Um exemplo bastante simplificado de meritocracia seria o aplicado nos sistemas escolares em muitas partes do mundo como no Brasil nos quais a promoção de série, por exemplo, se dá pelo escore obtido, geralmente numa escala de 0 a 10, em exames fundamentados principalmente em testes escritos num modelo puramente instrucional.
Será que todo aquele que obtém grau máximo nos exames é realmente o mais capaz, o mais inteligente, o mais esforçado?
Novamente há que se perguntar se o método utilizado na avaliação é justo e fiel, pois diversos heterogêneos podem pôr em xeque a veracidade e a efetividade de seu resultado, tais como a fraude corriqueira da malfadada “cola”, só para citar o exemplo mais gritante.
Mecanismos semelhantes à meritocracia foram adotados na história humana desde a antiga China, passando por Gengis Khan e Napoleão Bonaparte, chegando até os modelos de gestão empresarial do século XXI em muitas empresas que o adotam quase que como modelo unívoco para incentivar a competição e a produtividade entre seus empregados e com isso aumentar a produção e seus lucros.
Daí que surgem neologismos empresariais, tais como “selva de pedra” e “selva corporativa”.
— Sobrevivem os mais aptos!
Muitos de seus defensores fundamentam-se no Darwinismo Social, conceito popularizado em 1944 pelo historiador americano Richard Hofstadter, que parte da teoria da seleção natural de Charles Darwin, preconizando a existência de características biológicas e sociais que determinariam que uma pessoa (ou grupo de pessoas) é superior à outra (mais inteligente, mais hábil, mais capaz, mais esforçada, mais dotada, etc.) e que tais pessoas ou grupos que se enquadrassem nesses critérios seriam as mais aptas e portanto teriam mais mérito e consequentemente mais privilégios e mais poder.
A partir da teoria de Darwin se quis entender que o mais capaz é o mais adaptado e portanto sua sobrevivência é o principal motor da evolução.
Assim os donos do poder têm a obrigação histórica de promover a evolução artificial utilizando “ferramentas sociais” para “melhorar a espécie humana” livrando-a do “lixo genético”.
Fácil deduzir que tal pensamento mobilizou a defesa do imperialismo, do racismo, da eugenia e do holocausto – “se existe raça superior é por que existe raça inferior – a primeira tem a obrigação histórica de subjugar e aniquilar a segunda”.
E para quê culpar Darwin se esse pensamento terrível esteve presente desde épocas remotas:
Em Esparta por exemplo, na época de Platão, já se praticava a eugenia promovendo o infanticídio de recém-nascidos, numa sociedade militar, calcada essencialmente na meritocracia estabelecida pelos critérios bélicos, na qual se preconizava “a lei do mais forte”.
A meritocracia atualmente está associada em maior ou menor grau ao estado ou gestão burocrática, e se dá nas empresas por meio de testes de seleção ou concursos públicos e nos sistemas de poder (ditos democráticos) através de eleições que seria grosso modo uma forma de competição.
Cabe a mesma pergunta inicial se os critérios e os métodos são justos.
Embora a maioria das organizações seja defensora da meritocracia, esta não se expressa em sua forma pura em nenhuma parte do mundo.
O principal argumento em favor da meritocracia é que ela proporciona maior justiça do que outros sistemas hierárquicos, no entanto seu maior problema persiste que é o de definir, exatamente, o que cada um entende por “mérito” considerando que muitos sistemas que se dizem meritocráticos usam esse conceito para mascarar os privilégios e a opressão de uma classe social sobre a outra.
E é fácil verificar que as pessoas, em pleno século XXI, não recebem as mesmas oportunidades na maioria das sociedades do mundo e a discriminação racial, social, de gênero, política, religiosa e/ou econômica é ainda, infelizmente, seu principal viés.
Em contraposição à meritocracia existe a realização de modelos cooperativos, que querem enxergar na humanidade uma humana unidade num futuro de conjugação com o planeta e toda a sua biodiversidade – o sonho da construção de algo como um superorganismo, no qual a competição estaria sendo combinada sabiamente com a cooperação, colaboração e solidariedade.
A competição seria apenas uma das ferramentas da natureza.
Há que se descobrir, desenvolver e valorizar também as outras.
É como diz a boa Lei de Murphy:
– Não use apenas uma ferramenta. Porque se ela for, por exemplo, um martelo, você acabará tratando tudo como se fosse prego.
Essa é para pensar!
-o-
Artigo de Mustafá Ali Kanso
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