A demanda crescente da sociedade contemporânea por materiais com
propriedades melhores aos que são atualmente empregados em diversas
atividades do cotidiano faz da área da Química de Materiais um campo de
intensa atividade de pesquisa. Os tradicionais materiais poliméricos,
metálicos e cerâmicos não são mais capazes de, isoladamente, apresentar
as características necessárias para uma série de novas aplicações
tecnológicas que surgem. Atualmente busca-se unir o melhor das
propriedades encontradas nos universos inorgânico e orgânico das
diferentes classes de materiais em um único material, não só por
questões relacionadas à melhoria de propriedades físico-químicas e de
processabilidade, mas, também, com o intuito de produzir novas
propriedades de grande interesse tecnológico. A combinação de espécies
de diferentes naturezas químicas em um único material é rotina em
algumas áreas, como na indústria de tintas e polímeros, onde há muito
tempo, pigmentos e cargas inorgânicas são utilizados para modificar
propriedades mecânicas e ópticas de seus produtos. Entretanto, a grande
revolução neste campo está ocorrendo com o desenvolvimento dos chamados materiais híbridos,
os quais são formados a partir de um controle preciso da composição, da
distribuição, da forma e das interações entre as espécies que
constituem o material.
A principal fonte de inspiração para o
desenvolvimento desse tipo de material vem da Natureza. Organismos de
variadas espécies são capazes de produzir estruturas complexas com
propriedades únicas a partir da combinação de substâncias orgânicas e
inorgânicas comuns e abundantes no meio onde vivem. Esses processos de
biomineralização
servem como inspiração para o desenvolvimento de materiais híbridos
artificiais, chamados de bio-inspirados, visando aplicações em diversas
áreas como na indústria automobilística, na construção civil, na
microeletrônica e na medicina. Parte disso já é realidade incorporada
como inovações tecnológicas em produtos tradicionais. Por exemplo,
tecidos à prova de balas inspirados na composição e arranjo estrutural
dos componentes das teias de aranha; superfícies auto-limpantes e
auto-reparadoras inspiradas em folhas de plantas; compósitos de alta
resistência inspirados no arranjo estrutural das conchas.
O exemplo das conchas é interessante de
ser comentado, pois define bem o que é um material híbrido e suas
diferenças em relação a um compósito convencional.
As conchas produzidas por vários moluscos marinhos são constituídas
basicamente por 95% de carbonato de cálcio e 5% de biopolímeros. Essas
carapaças calcárias apresentam várias propriedades diferentes dos seus
constituintes isolados como elevada resistência mecânica e brilho. A
simples mistura dessas substâncias na mesma proporção encontrada no biomaterial não
reproduz as propriedades observadas no material natural. Isso demonstra
que essas propriedades não são resultantes unicamente da composição,
mas, sim, do arranjo estrutural dos componentes no material. Enquanto
que em um compósito convencional as fases de carbonato de cálcio e biopolímero encontram-se na escala micrométrica, na estrutura da concha essas fases estão em um arranjo nanométrico ordenado
(Figura 1). As interações que se estabelecem nesse domínio espacial
são muito mais efetivas e são as principais responsáveis por gerar
propriedades diferenciadas.
Um material híbrido é normalmente
produzido em escala laboratorial a partir de dois processos: (i)
deposição controlada de camadas, através da qual as unidades orgânicas e
inorgânicas vão sendo combinadas uma a uma consecutivamente; (ii)
auto-organização, a partir de um efeito cooperativo entre as espécies
que resulta na formação espontânea de uma estrutura ordenada. Para que
essas técnicas sejam aplicadas na produção industrial, esforços para
desenvolvimento de equipamentos e processos ainda são necessários.
Por outro lado, alguns tipos de
materiais híbridos podem ser produzidos em escala industrial sem a
necessidade de novos equipamentos, apenas modificando o processo e as
matérias primas envolvidas. Isso é o que ocorre atualmente nos setores
das indústrias de polímeros e têxtil, que já comercializam uma série de
produtos baseados no conceito de material híbrido. Esse é o caso dos nanocompósitos
gerados pela combinação de argila e polímeros. A argila é um material
inorgânico natural que desperta interesse tecnológico e industrial
devido a sua estrutura lamelar,
formada pelo empilhamento de várias camadas de aluminossilicato. Os
nanocompósitos poliméricos estão revolucionando a indústria automotiva,
da construção civil e de embalagens. A presença de pequenas quantidades
de argila na matriz polimérica produz um material que apresenta grande
resistência mecânica, retardamento do processo de combustão e barreira à
difusão de oxigênio. Essas propriedades são relevantes para a produção
de peças mais leves e resistentes ao choque e ao fogo, para a confecção
de películas protetoras para superfícies e pinturas automotivas e para a
produção de embalagens que conservam o produto por períodos mais
prolongados.
As argilas são utilizadas na indústria de polímeros há bastante
tempo, atuando principalmente como modificadoras de viscosidade e como carga inorgânica.
Entretanto, as propriedades diferenciadas dos compósitos de
argila-polímero só são observadas em casos específicos. É necessário que
a argila esteja presente no material totalmente dispersa na forma de
partículas com dimensões nanométricas. Nesses compósitos as cadeias
poliméricas interagem de diferentes formas com a matriz inorgânica,
conforme mostrado na Figura 2.
Nos compósitos convencionais as fases
estão segregadas, havendo domínios inorgânicos e orgânicos bem
definidos. Mudanças significativas nas propriedades passam a ser
observadas quando a segregação entre as fases começa a ser quebrada e a
interação entre as unidades passa a ocorrer em uma escala que se
aproxima da escala molecular, como no caso do chamado nanocompósito
intercalado. Nesse tipo de compósito as cadeias do polímero encontram-se
intercaladas entre as lamelas da argila sem promover a desagregação
estrutural. Empregando condições e precursores adequados, as lamelas que
formam a argila podem ser completamente separadas durante o processo de
polimerização, gerando os chamados nanocompósitos esfoliados. Nesse
caso, uma pequena porção de argila é transformada em uma enorme
quantidade de partículas de dimensões nanométricas totalmente dispersas
na matriz polimérica. Isso torna a interação polímero-argila muito mais
efetiva, gerando no material propriedades que não são observadas nos
casos anteriores. Trabalhar com a matéria nessas dimensões só foi
possível recentemente, a partir do desenvolvimento de equipamentos
capazes de “enxergar” esses arranjos estruturais e de modificações
químicas efetuadas na argila previamente à sua adição ao polímero.
A indústria têxtil é outra grande beneficiária dos materiais híbridos. Tecidos contendo nanopartículas
de prata depositadas são utilizados na produção de roupas em que não há
crescimento de bactérias e fungos, o que diminui a produção de odores.
Propriedades superficiais podem ser modificadas a partir da impregnação
de nanopartículas de óxidos metálicos de maneira a produzir tecidos que
repelem água e sujeira (auto-limpante), que bloqueiam a penetração de
raios ultravioleta e que evitam a formação de vincos. Nanotubos
de carbono estão sendo usados para produzir tecidos com elevada
resistência mecânica capazes de produzir roupas à prova de balas com o
peso e a maleabilidade de um tecido comum. Corantes encapsulados em
matrizes inorgânicas covalentemente ligadas às fibras do tecido produzem
roupas com cores que não desbotam mesmo com o uso de alvejantes.
Outra área muito promissora é a
produção de materiais híbridos contendo biomoléculas (enzimas,
proteínas, biopolímeros, DNA) e fármacos para a área médica. Enzimas
imobilizadas em matrizes inorgânicas produzem materiais que podem ser
usados em biossensores para diagnóstico de doenças. Da mesma forma, a
imobilização de fármacos permite a produção de capsulas “inteligentes”
capazes de levar o medicamento até o local desejado e só, então,
liberá-lo, tornando o tratamento muito mais eficaz com o uso de doses
menores de medicamento. Sólidos inorgânicos porosos modificados com
peptídeos e indutores de crescimento celular apresentam bons resultados
como suportes para crescimento tecidual e reparação óssea, diminuindo o
tempo de recuperação da lesão em comparação aos materiais tradicionais.
O desenvolvimento de novos materiais
híbridos bio-inspirados representa uma área em franco crescimento e
repleta de possibilidades e desafios tecnológicos para os profissionais
da Química. Um futuro promissor está a caminho.
Leia mais
- Functional Hybrid Materials, Pedro Gómez-Romero, Clément Sanchez
(editores), 2004, WILEY-VCH Verlag GmbH & Co. KGaA, Weinheim, ISBN:
3-527-30484-3
- Materiais híbridos orgânico-inorgânicos: preparação e algumas
aplicações, Nadia M. José, Luís A. S. A. Prado, Química Nova, 2005,
28(2), 281-288.
Conceitos Abordados
Aluminossilicato:
é uma estrutura formada por átomos de silício e alumínio combinados a
átomos de oxigênio em ponte. Essa é a composição química base de uma
grande gama de minerais encontrados na Natureza.
Argila: é um
termo geral que representa uma grande família de minerais cuja estrutura
é formada por camadas empilhadas, chamadas de lamelas, geralmente
formadas por aluminossilicatos.
Biomaterial: material de origem natural produzido por algum organismo.
Biomineralização:
processo pelo qual organismos constroem estruturas inorgânicas sólidas,
a partir de sais solúveis no meio em que vivem. Esse é o processo que
resulta na formação das conchas de carbonato de cálcio dos moluscos, no
esqueleto de silicato das algas diatomáceas e nos ossos do corpo humano.
Biomolécula: é
uma substância com composição e estrutura química bem definidas e que
está presente ou é produzida em organismos como os aminoácidos, DNA,
enzimas.
Biopolímero: é um polímero de origem natural, como o amido e a celulose, produzido a partir de biomoléculas.
Carga Inorgânica: aditivo adicionado a matriz polimérica para aumentar o volume de polímero sem prejudicar as propriedades do polímero.
Compósito: é
um material formado pela combinação de dois ou mais materiais de
composição química e estruturas bem definidas e que são organizados em
um mesmo arranjo espacial.
Estrutura lamelar: é uma estrutura formada pelo empilhamento de várias camadas, chamadas lamelas.
Micrométrica: escala de tamanho de objetos que tenham dimensões de um milionésimo do metro.
Microscopia eletrônica de varredura:
técnica de formação de imagens ampliadas de objetos que utiliza
elétrons no lugar da luz visível para ampliar o tamanho de objetos. Os
elétrons permitem uma ampliação infinitamente maior que a luz visível,
tornando possível a observação de características em escalas diminutas.
Nanocompósito: é um compósito formado por substância com dimensões da ordem de um bilionésimo do metro.
Nanométrica: escala de tamanho de objetos que tenham dimensões de um bilionésimo do metro.
Nanopartícula: é uma partícula onde ao menos uma de suas dimensões encontra-se na faixa nanométrica.
Nanotubo: é
uma nanopartícula de formato cilíndrico com diâmetro na faixa
nanométrica. É considerado um tipo especial de nanopartícula que
desperta grande interesse tecnológico devido às propriedades
diferenciadas observadas em partículas com esse formato.
Prof. Dr. Marcos A. Bizeto
Laboratório de Materiais Híbridos
Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP
mabizeto@unifesp.br - Fonte: CRq/IV - SP)_
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