quarta-feira, 22 de maio de 2019

A inspiração que vem da Natureza

 
A inspiração que vem da Natureza

A demanda crescente da sociedade contemporânea por materiais com propriedades melhores aos que são atualmente empregados em diversas atividades do cotidiano faz da área da Química de Materiais um campo de intensa atividade de pesquisa. Os tradicionais materiais poliméricos, metálicos e cerâmicos não são mais capazes de, isoladamente, apresentar as características necessárias para uma série de novas aplicações tecnológicas que surgem. Atualmente busca-se unir o melhor das propriedades encontradas nos universos inorgânico e orgânico das diferentes classes de materiais em um único material, não só por questões relacionadas à melhoria de propriedades físico-químicas e de processabilidade, mas, também, com o intuito de produzir novas propriedades de grande interesse tecnológico. A combinação de espécies de diferentes naturezas químicas em um único material é rotina em algumas áreas, como na indústria de tintas e polímeros, onde há muito tempo, pigmentos e cargas inorgânicas são utilizados para modificar propriedades mecânicas e ópticas de seus produtos. Entretanto, a grande revolução neste campo está ocorrendo com o desenvolvimento dos chamados materiais híbridos, os quais são formados a partir de um controle preciso da composição, da distribuição, da forma e das interações entre as espécies que constituem o material.

A principal fonte de inspiração para o desenvolvimento desse tipo de material vem da Natureza. Organismos de variadas espécies são capazes de produzir estruturas complexas com propriedades únicas a partir da combinação de substâncias orgânicas e inorgânicas comuns e abundantes no meio onde vivem. Esses processos de biomineralização servem como inspiração para o desenvolvimento de materiais híbridos artificiais, chamados de bio-inspirados, visando aplicações em diversas áreas como na indústria automobilística, na construção civil, na microeletrônica e na medicina. Parte disso já é realidade incorporada como inovações tecnológicas em produtos tradicionais. Por exemplo, tecidos à prova de balas inspirados na composição e arranjo estrutural dos componentes das teias de aranha; superfícies auto-limpantes e auto-reparadoras inspiradas em folhas de plantas; compósitos de alta resistência inspirados no arranjo estrutural das conchas.

O exemplo das conchas é interessante de ser comentado, pois define bem o que é um material híbrido e suas diferenças em relação a um compósito convencional. As conchas produzidas por vários moluscos marinhos são constituídas basicamente por 95% de carbonato de cálcio e 5% de biopolímeros. Essas carapaças calcárias apresentam várias propriedades diferentes dos seus constituintes isolados como elevada resistência mecânica e brilho. A simples mistura dessas substâncias na mesma proporção encontrada no biomaterial não reproduz as propriedades observadas no material natural. Isso demonstra que essas propriedades não são resultantes unicamente da composição, mas, sim, do arranjo estrutural dos componentes no material. Enquanto que em um compósito convencional as fases de carbonato de cálcio e biopolímero encontram-se na escala micrométrica, na estrutura da concha essas fases estão em um arranjo nanométrico ordenado (Figura 1).  As interações que se estabelecem nesse domínio espacial são muito mais efetivas e são as principais responsáveis por gerar propriedades diferenciadas.
 
Um material híbrido é normalmente produzido em escala laboratorial a partir de dois processos: (i) deposição controlada de camadas, através da qual as unidades orgânicas e inorgânicas vão sendo combinadas uma a uma consecutivamente; (ii) auto-organização, a partir de um efeito cooperativo entre as espécies que resulta na formação espontânea de uma estrutura ordenada. Para que essas técnicas sejam aplicadas na produção industrial, esforços para desenvolvimento de equipamentos e processos ainda são necessários.
 
Por outro lado, alguns tipos de materiais híbridos podem ser produzidos em escala industrial sem a necessidade de novos equipamentos, apenas modificando o processo e as matérias primas envolvidas. Isso é o que ocorre atualmente nos setores das indústrias de polímeros e têxtil, que já comercializam uma série de produtos baseados no conceito de material híbrido. Esse é o caso dos nanocompósitos gerados pela combinação de argila e polímeros. A argila é um material inorgânico natural que desperta interesse tecnológico e industrial devido a sua estrutura lamelar, formada pelo empilhamento de várias camadas de aluminossilicato. Os nanocompósitos poliméricos estão revolucionando a indústria automotiva, da construção civil e de embalagens. A presença de pequenas quantidades de argila na matriz polimérica produz um material que apresenta grande resistência mecânica, retardamento do processo de combustão e barreira à difusão de oxigênio. Essas propriedades são relevantes para a produção de peças mais leves e resistentes ao choque e ao fogo, para a confecção de películas protetoras para superfícies e pinturas automotivas e para a produção de embalagens que conservam o produto por períodos mais prolongados.
 
As argilas são utilizadas na indústria de polímeros há bastante tempo, atuando principalmente como modificadoras de viscosidade e como carga inorgânica. Entretanto, as propriedades diferenciadas dos compósitos de argila-polímero só são observadas em casos específicos. É necessário que a argila esteja presente no material totalmente dispersa na forma de partículas com dimensões nanométricas. Nesses compósitos as cadeias poliméricas interagem de diferentes formas com a matriz inorgânica, conforme mostrado na Figura 2.
 
 
 
Nos compósitos convencionais as fases estão segregadas, havendo domínios inorgânicos e orgânicos bem definidos. Mudanças significativas nas propriedades passam a ser observadas quando a segregação entre as fases começa a ser quebrada e a interação entre as unidades passa a ocorrer em uma escala que se aproxima da escala molecular, como no caso do chamado nanocompósito intercalado. Nesse tipo de compósito as cadeias do polímero encontram-se intercaladas entre as lamelas da argila sem promover a desagregação estrutural. Empregando condições e precursores adequados, as lamelas que formam a argila podem ser completamente separadas durante o processo de polimerização, gerando os chamados nanocompósitos esfoliados. Nesse caso, uma pequena porção de argila é transformada em uma enorme quantidade de partículas de dimensões nanométricas totalmente dispersas na matriz polimérica. Isso torna a interação polímero-argila muito mais efetiva, gerando no material propriedades que não são observadas nos casos anteriores. Trabalhar com a matéria nessas dimensões só foi possível recentemente, a partir do desenvolvimento de equipamentos capazes de “enxergar” esses arranjos estruturais e de modificações químicas efetuadas na argila previamente à sua adição ao polímero.
 
A indústria têxtil é outra grande beneficiária dos materiais híbridos. Tecidos contendo nanopartículas de prata depositadas são utilizados na produção de roupas em que não há crescimento de bactérias e fungos, o que diminui a produção de odores. Propriedades superficiais podem ser modificadas a partir da impregnação de nanopartículas de óxidos metálicos de maneira a produzir tecidos que repelem água e sujeira (auto-limpante), que bloqueiam a penetração de raios ultravioleta e que evitam a formação de vincos. Nanotubos de carbono estão sendo usados para produzir tecidos com elevada resistência mecânica capazes de produzir roupas à prova de balas com o peso e a maleabilidade de um tecido comum. Corantes encapsulados em matrizes inorgânicas covalentemente ligadas às fibras do tecido produzem roupas com cores que não desbotam mesmo com o uso de alvejantes.
 
Outra área muito promissora é a produção de materiais híbridos contendo biomoléculas (enzimas, proteínas, biopolímeros, DNA) e fármacos para a área médica. Enzimas imobilizadas em matrizes inorgânicas produzem materiais que podem ser usados em biossensores para diagnóstico de doenças. Da mesma forma, a imobilização de fármacos permite a produção de capsulas “inteligentes” capazes de levar o medicamento até o local desejado e só, então, liberá-lo, tornando o tratamento muito mais eficaz com o uso de doses menores de medicamento. Sólidos inorgânicos porosos modificados com peptídeos e indutores de crescimento celular apresentam bons resultados como suportes para crescimento tecidual e reparação óssea, diminuindo o tempo de recuperação da lesão em comparação aos materiais tradicionais.
 
O desenvolvimento de novos materiais híbridos bio-inspirados representa uma área em franco crescimento e repleta de possibilidades e desafios tecnológicos para os profissionais da Química. Um futuro promissor está a caminho.
 
Leia mais
 
- Functional Hybrid Materials, Pedro Gómez-Romero, Clément Sanchez (editores), 2004, WILEY-VCH Verlag GmbH & Co. KGaA, Weinheim, ISBN: 3-527-30484-3
 
- Materiais híbridos orgânico-inorgânicos: preparação e algumas aplicações, Nadia M. José, Luís A. S. A. Prado, Química Nova, 2005, 28(2), 281-288.
 
 
Conceitos Abordados
 
Aluminossilicato: é uma estrutura formada por átomos de silício e alumínio combinados a átomos de oxigênio em ponte. Essa é a composição química base de uma grande gama de minerais encontrados na Natureza.
 
Argila: é um termo geral que representa uma grande família de minerais cuja estrutura é formada por camadas empilhadas, chamadas de lamelas, geralmente formadas por aluminossilicatos.
 
Biomaterial: material de origem natural produzido por algum organismo.
 
Biomineralização: processo pelo qual organismos constroem estruturas inorgânicas sólidas, a partir de sais solúveis no meio em que vivem. Esse é o processo que resulta na formação das conchas de carbonato de cálcio dos moluscos, no esqueleto de silicato das algas diatomáceas e nos ossos do corpo humano.
 
Biomolécula: é uma substância com composição e estrutura química bem definidas e que está presente ou é produzida em organismos como os aminoácidos, DNA, enzimas.
 
Biopolímero: é um polímero de origem natural, como o amido e a celulose, produzido a partir de biomoléculas.
 
Carga Inorgânica: aditivo adicionado a matriz polimérica para aumentar o volume de polímero sem prejudicar as propriedades do polímero.
 
Compósito: é um material formado pela combinação de dois ou mais materiais de composição química e estruturas bem definidas e que são organizados em um mesmo arranjo espacial.
 
Estrutura lamelar: é uma estrutura formada pelo empilhamento de várias camadas, chamadas lamelas.
 
Micrométrica: escala de tamanho de objetos que tenham dimensões de um milionésimo do metro.
 
Microscopia eletrônica de varredura: técnica de formação de imagens ampliadas de objetos que utiliza elétrons no lugar da luz visível para ampliar o tamanho de objetos. Os elétrons permitem uma ampliação infinitamente maior que a luz visível, tornando possível a observação de características em escalas diminutas.
 
Nanocompósito: é um compósito formado por substância com dimensões da ordem de um bilionésimo do metro.
 
Nanométrica: escala de tamanho de objetos que tenham dimensões de um bilionésimo do metro.
 
Nanopartícula: é uma partícula onde ao menos uma de suas dimensões encontra-se na faixa nanométrica.
 
Nanotubo: é uma nanopartícula de formato cilíndrico com diâmetro na faixa nanométrica. É considerado um tipo especial de nanopartícula que desperta grande interesse tecnológico devido às propriedades diferenciadas observadas em partículas com esse formato.
 
Prof. Dr. Marcos A. Bizeto
Laboratório de Materiais Híbridos
Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP
mabizeto@unifesp.br - Fonte:CRQ/IV

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