quinta-feira, 3 de janeiro de 2013
O cardápio dos próximos anos (alterações climáticas influenciando a produção de alimentos)
Especialistas preveem queda na produção e emergência de novas doenças e pragas em consequência das mudanças do clima
CARLOS FIORAVANTI | Edição 198 - Agosto de 2012
Revista Pesquisa FAPESP
© EDUARDO CESAR
O Face, em Jaguariúna: cafeeiros crescem mais com mais CO2
Está ocorrendo uma articulação entre especialistas para prever os
possíveis efeitos das mudanças do clima sobre o agronegócio, responsável
por um terço da economia brasileira. Há indicações de que a produção de
soja, trigo e outros cultivos possa cair de modo dramático e a
incidência de pragas e doenças possa aumentar, em resposta à provável
elevação da temperatura e mudanças na distribuição das chuvas pelo país.
O temor é que, num primeiro momento, os preços possam subir e a
variedade de cereais, hortaliças e frutas à mesa sofra uma redução.
Antecipando-se aos cenários que preveem tempos difíceis pela frente,
centros de pesquisa e empresas estão desenvolvendo – e já apresentando –
variedades de cereais e hortaliças mais resistentes a temperaturas mais
elevadas e ao ataque de microrganismos causadores de doenças e pragas. A
tendência é que, mais adiante, plantas, pragas, consumidores e a
própria economia se reacomodem e encontrem novos estados de equilíbrio.
Em um estudo financiado pelo Banco Mundial, pesquisadores da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Embrapa Informática
Agropecuária, usando 23 modelos computacionais de simulação climática
global e três regionais, detectaram uma clara tendência de queda na
produção de algodão, arroz, feijão, soja, milho e trigo, como efeito da
provável elevação da temperatura, em 2020 e 2030. A redução da produção
pode chegar a 64% no caso do feijão e 41% do trigo, mesmo no cenário
mais otimista, com um pequeno aumento na temperatura média anual. No
cenário pessimista, a produção de feijão pode cair 70% e a de soja, 24%.
De acordo com esse trabalho, só a produção de cana-de-açúcar e de
pastagens é que deve se beneficiar com o clima mais quente (ver tabela).
Em paralelo, os especialistas do Climapest, um projeto de pesquisas
coordenado pela Embrapa Meio Ambiente, de Jaguariúna, estão vendo que
algumas doenças – principalmente as causadas por fungos – e as pragas
podem se agravar em muitas das 19 culturas analisadas – entre as quais
soja, milho, café, arroz, feijão, banana, manga e uva –, em decorrência
da elevação dos níveis de CO2 do ar, da temperatura e da radiação
ultravioleta B, como previsto nos cenários de mudanças do clima (ver
tabela).
Outra possibilidade é a migração de doenças como a sigatoka negra, a
mais preocupante da bananeira, causada por um fungo, que deve perder
intensidade em algumas regiões produtoras, mas avançar para o sul,
emergindo onde ainda não se manifestou. “A luta contra as doenças não
tem fim”, diz Wagner Bettiol, da Embrapa Meio Ambiente. “As plantas e as
pragas das próximas décadas poderão ser diferentes das de hoje.”
Como se prevê que a incidência de algumas doenças deve aumentar e a de
outras diminuir, “não é possível generalizar o que vai acontecer”, diz
Raquel Ghini, pesquisadora da Embrapa de Jaguariúna e coordenadora do
Climapest. Criado há três anos com um investimento de R$ 5 milhões da
Embrapa e R$ 2 milhões de outras instituições públicas e empresas, o
projeto reúne 134 pesquisadores de 17 unidades da Embrapa e 22
institutos de pesquisa e universidades. O trabalho deve tomar a forma,
até o final do ano, de um livro com mapas indicando a provável
distribuição das doenças e pragas agrícolas no país nas próximas
décadas.
“O clima mais quente favorece o crescimento e a reprodução de insetos”,
reconhece José Parra, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz
de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador de
um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre controle biológico
de pragas, “mas o prejuízo depende de interação com outros insetos e com
o ambiente, das respostas da planta e da oferta de água”.
Segundo Parra, os próprios inimigos naturais poderão se desenvolver mais
rapidamente e combater as pragas. “Se houver alteração da geografia das
culturas, como poderá acontecer com os citrus”, diz ele, “as pragas
poderão mudar, e vão prevalecer as mais resistentes a altas
temperaturas”.
Efeitos visíveis
“Vimos claramente que a área plantada de café caiu bastante ou até mesmo
desapareceu no noroeste paulista e no sul de Minas Gerais, que sofreram
um aumento de temperatura nas últimas décadas”, diz Hilton Silveira
Pinto, pesquisador da Unicamp e um dos coordenadores do estudo
financiado pelo Banco Mundial. Seus estudos anteriores haviam indicado
uma redução próxima a 90% nas áreas favoráveis ao plantio em Goiás,
Minas e São Paulo e de 75% no Paraná até 2020, em resposta ao aumento de
temperatura. O café deve continuar a ser cultivado apenas nas terras
mais altas do Sudeste ou mais ao sul do país, inclusive no Rio Grande do
Sul, onde hoje é apenas consumido. “As alterações do clima já estão
mudando as redes de transporte e distribuição e organização rural, na
medida em que implicam o desemprego ou a migração de mão de obra
especializada.”
O aumento da concentração de gás carbônico (CO2) do ar pode ter um
efeito favorável, ao aumentar a produtividade agrícola e fazer as
plantas crescerem mais rapidamente. Em um dos experimentos de campo da
Embrapa de Jaguariúna, chamado Face, sigla de free air carbon dioxide
enrichment, os cafeeiros que receberam doses extras de CO2 cresceram
mais e estão do mesmo tamanho que os pés de café plantados um ano antes,
que se nutrem com o CO2 fornecido pela atmosfera normal.
Em funcionamento desde agosto de 2011, o Face ocupa uma área de 6,5
hectares cultivada com cafeeiros. Doze octógonos com 10 metros de
diâmetro se destacam em meio aos cafeeiros. Em seis octógonos, as
plantas recebem CO2 em uma concentração de 550 partes por milhão (ppm),
simulando a atmosfera do final do século. Por dia, sensores acionados
automaticamente de acordo com a direção e intensidade do vento liberam
sobre as plantas 600 kg do gás que sai de um tanque de 10 metros. Em
outros seis octógonos os cafeeiros contam apenas com o CO2 da atmosfera,
em uma concentração de 400 ppm – já é mais do que os 350 ppm que Raquel
usava há 10 anos para prever o comportamento das plantas. “Há 10 anos,
ninguém acreditava quando se falava em mudanças climáticas”, diz ela.
O crescimento acelerado das plantas também pode ser um problema. Nos
últimos dois anos, os produtores de flores de Holambra verificaram que
as plantas floresceram antes do esperado, provavelmente por causa da
elevação da temperatura média na região. Nesse caso, o crescimento
acelerado é uma tragédia para quem tem de entregar suas encomendas
viçosas nas mãos dos consumidores em datas certas, como a véspera do Dia
das Mães ou em Finados.
Na Embrapa Semiárido, de Petrolina, Pernambuco, por meio de uma série de
testes em estufas de topo aberto, Francislene Angelotti verificou que
as principais doenças causadas por fungos que prejudicam a produção de
uvas – o míldio, o oídio e a ferrugem – poderão responder de maneira
diferenciada ao aumento da concentração de CO2. Há diferenças também de
acordo com a variedade de uva. A variedade Sugraone se mostrou mais
sensível à ferrugem e a Crimson ao fungo causador do oídio da videira,
mas em contrapartida o míldio foi considerado menos agressivo na
variedade Itália. De modo similar, o fungo causador do oídio em tomate,
alface, pimentão e melão deve se tornar mais comum, beneficiado pela
temperatura mais alta e umidade mais intensa. Já o fungo que causa
míldio em alface e atualmente se desenvolve bem apenas com frio e
umidade deve ter dificuldade para crescer em clima mais quente e seco.
Os especialistas alertam, porém, que os agentes causadores de doenças
podem se adaptar ou sair da sombra, aproveitando o espaço deixado por
outros. Um microrganismo causador de míldio em abóbora, melão, alface e
abobrinha, oPseudoperonospora cubensis, deveria morrer em temperaturas
mais altas, mas aparentemente já se adaptou a um clima mais quente e
seco.
“O míldio se tornou uma doença comum no norte de Minas, porque o fungo
já se adaptou a um clima mais quente”, diz Kátia Regiane Brunelli,
pesquisadora da Sakata Seed Sudamerica Ltda., empresa multinacional
japonesa que desenvolve e produz sementes de hortaliças, por meio de
melhoramento genético. “Com um clima tendendo para mais quente e seco”,
diz Romulo Fujito Kobori, diretor de pesquisa e desenvolvimento da
empresa, “algumas doenças causadas por vírus devem se tornar mais
importantes do que hoje”.
Substitutos em campo
Kobori, com sua equipe de geneticistas, intensificou a busca por
variedades mais resistentes aos efeitos das mudanças do clima logo
depois das primeiras conversas com a equipe do Climapest, há sete anos,
sobre as doenças mais prováveis daqui a alguns anos. Uma caminhada pelas
estufas e pelos canteiros da estação experimental da empresa, em
Bragança Paulista, indica que o trabalho amadureceu para a maioria das
hortaliças trabalhadas: “Em 20 anos, se o clima mudar muito, esta é uma
variedade de brócolis que não vai servir, mas esta outra vai”, diz ele,
indicando para os canteiros à sua frente, tomados por brócolis e alface
com sutis, mas decisivas, diferenças no porte, formato e espessura das
folhas e, claro, na capacidade de sobreviver a doenças.
A Sakata começou há alguns anos a vender variedades de tomate, alface,
pimentão, melão, cenoura, cebola, abóbora, abobrinha e pepino
geneticamente resistentes a fungos, vírus e bactérias que devem se
tornar mais expressivos nos próximos anos nas regiões tropicais. É um
trabalho demorado: cada nova variedade toma de 10 a 15 anos de trabalho
até se tornar comercial. Ele espera que as técnicas de biologia
molecular possam reduzir esse tempo à metade ao identificar as plantas
que apresentam os genes que lhes conferem características de interesse
como qualidade, produtividade e resistência a doenças.
A seleção genética de novas variedades de árvores frutíferas é ainda
mais demorada. “As variedades que usamos são de 60 anos atrás”, diz
Renato Bassanezi, pesquisador do Fundo de Defesa da Citricultura
(Fundecitrus), centro de pesquisa financiado pelos produtores em
Araraquara. Laranjeiras mais resistentes às incertezas do tempo seriam
bem-vindas porque as mudanças do clima já estão interferindo na
citricultura, uma das principais atividades econômicas do estado de São
Paulo, o principal produtor nacional e um dos maiores do mundo, com 230
milhões de pés de laranja em produção.
© EDUARDO CESAR
O Podosphaera xanthii, causador do oídio, crescendo em folhas de pepino: um dos prováveis perigos à frente
Em 2009, o inesperado excesso de chuva nas plantações de laranja
atrapalhou a floração e favoreceu o crescimento de fungos e a produção
caiu 10%. Segundo Bassanezi, os produtores compraram fungicidas, que não
foram necessários porque no ano seguinte o clima foi seco. Os quase 20
dias de chuva contínua no início de junho deste ano devem antecipar a
florada e, outra vez, prejudicar a floração e favorecer o crescimento de
ervas daninhas, fungos e insetos transmissores de doenças.
O cancro cítrico, doença de origem bacteriana bastante disseminada, pode
se espalhar mais facilmente e se apresentar sob formas mais severas em
um clima marcado por temperaturas médias anuais mais elevadas e chuvas
mais intensas e concentradas. “Confirmando-se as previsões de mudanças
climáticas”, diz Bassanezi, “as regiões do norte e do sul do país
ficarão mais favoráveis para epidemias de cancro”.
Bancos de Germoplasma
Se as pragas e doenças avançarem ainda mais, os bancos de germoplasma –
coleções de genótipos de arroz, feijão, soja, milho e muitas outras
plantas de interesse econômico, mantidas em câmaras resfriadas ou em
campo – devem ganhar mais atenção. A situação atual dos bancos de
germoplasma é inquietante, porque não há um inventário atualizado das
coleções, dispersas em centros de pesquisas, universidades, jardins
botânicos e empresas.
“As coleções dos bancos de germoplasma não estão adequadamente
caracterizadas”, diz José Baldin Pinheiro, professor da Esalq e
presidente da Rede Paulista de Recursos Genéticos, criada em março deste
ano. Em um encontro marcado para o mês de dezembro em Piracicaba, os
integrantes da rede devem apresentar uma visão atualizada do acervo e do
estado de conservação dos bancos paulistas de germoplasma.
Talvez muitas plantas da agricultura do futuro já estejam crescendo no
Nordeste. Em novembro de 2006, ao se mudar do interior do Paraná para
Petrolina, Francislene admirou-se com a resistência à seca e o poder de
regeneração das plantas da região, que pareciam queimadas por fogo, e
duas semanas depois de uma chuva começavam a brotar outra vez.
Outra surpresa, há poucos meses, foi saborear as maçãs, peras e caquis
irrigados e cultivados no campo experimental da Embrapa. “As variedades
de pera do Instituto Agronômico de Campinas e de maçãs do Instituto
Agronômico do Paraná se adaptaram muito bem”, diz Paulo Coelho Lopes,
coordenador do projeto de diversificação de culturas da Embrapa
Semiárido. “Nunca se imaginava que frutas de clima temperado pudessem
crescer aqui.”
Artigo científico
GHINI, R. et. al. Climate change and diseases of tropical and plantation crops. Plant Pathology. v. 60, n. 1, p. 122-32. 2011.
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