A identidade de gênero e a utilização de sanitários públicos nos shopping centers
Ricardo Gesteira Ramos e Almeida
É
inegável que no Brasil os shopping centers, não de hoje, vêm ocupando o
lugar dos espaços públicos que foram subtraídos dos cidadãos, seja pela
violência crescente ou pelo simples abandono governamental dos bens,
parques e áreas de lazer que deveriam ser destinadas à população.
Não é por outra
razão que as administrações dos empreendimentos dessa natureza se
habituaram a lidar com (e se posicionar diante de) questões sociais
polêmicas, muitas vezes antes mesmo das autoridades, governantes ou do
Judiciário.
Uma recente
discussão, envolvendo a insatisfação de um grupo de 21 funcionárias de
lojas da praça de alimentação de um dos mais expressivos shopping
centers de Salvador/BA, em razão da utilização por uma travesti, também
funcionária de uma loja, do sanitário feminino do empreendimento é mais
um exemplo dessa realidade e exigiu posicionamento adequado da
administração do referido shopping.
Por certo, a
discussão acerca da possibilidade de utilização dos sanitários públicos
por pessoa que, na condução da sua vida social, não se identifica com o
seu gênero de nascimento e, portanto, com o gênero constante da sua
identidade civil possui implicações jurídicas mais complexas do que a
princípio possa parecer.
Diz-se isso tendo
em vista que as questões relativas à compatibilização da identidade de
gênero e, de forma mais ampla, as relativas à liberdade de orientação
sexual, estão intimamente relacionadas com os chamados direitos da
personalidade e, portanto, com a própria dignidade da pessoa humana que é
nada menos que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil,
conforme preceito inscrito no art. 1º, III da CF/88.
Os direitos da
personalidade se destinam à constituição de um núcleo de proteção
psicofísica do indivíduo, tutelando interesses que sejam essenciais à
preservação do próprio homem.
Por certo, a
preservação do homem passa pela salvaguarda de todo o conjunto de
atributos que conduzem à adjetivação do "ser" como "humano": liberdade
de pensamento, escolhas, honra e, inegavelmente, dignidade.
Nos dias atuais,
nos quais os direitos da personalidade atingiram inegável reconhecimento
nos mais diversos ordenamentos jurídicos, mesmo como categoria
autônoma, se nota sem grande esforço que sua abordagem doutrinária
percorre necessariamente a trilha aberta pelo chamado princípio da
dignidade humana.
Como bem destaca a professora Cantali:
[...] a dignidade da pessoa humana se traduz para além de outras dimensões, em uma dimensão dúplice, protetiva e promocional da pessoa humana. Na perspectiva promocional revela-se a autodeterminação dos interesses pessoais, expressão da autonomia e da liberdade, base da consagração do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade [...] (CANTALI, 2009)
Em outros termos,
com a elevação da dignidade humana à condição de pilar do próprio
Estado de Direito, passou-se a reconhecer a personalidade como valor;
como fator cujo respeito e promoção são essenciais à plena realização
das finalidades do próprio Estado.
Vista como valor,
a personalidade passa a exigir uma proteção que não seja limitada por
enumerações legislativas. A complexidade da personalidade humana não
caberia em numeros clausus apresentados em incisos de artigos de leis civis.
Como destaca o professor Gustavo Tepedino:
Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do §2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e proteção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento (TEPEDINO, 2008)
Assim, ainda que
estejamos diante de ordenamentos jurídicos que não tragam, de modo
explícito, em suas cartas constitucionais a previsão ou referência
direta ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade – em todas
as suas várias dimensões, que envolvem a liberdade de orientação sexual e
a identidade de gênero, por exemplo – não se pode negar vigência a tal
preceito geral de tutela da personalidade, como decorrência do próprio
princípio da dignidade humana.
Nesse sentido é, também, a conclusão de Joyceane Bezerra, segundo a qual "o
amparo legal ao desenvolvimento da pessoa humana só se efetivará a
partir de uma cláusula geral de promoção e tutela, capaz de ultrapassar a
proteção dada aos direitos subjetivos enumerados e englobar toda a
riqueza das manifestações da personalidade do homem em sua
singularidade." (MENEZES, 2009)
Por tais razões, a
proposição de soluções simplistas como a excludente criação de
sanitários exclusivos, ou mesmo a adoção de soluções restritivas, como a
da exigência de utilização do sanitário que se coadune exclusivamente
com a identidade civil do indivíduo, não podem certamente ser admitidas,
sob pena de ofensa ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade
e, portanto, à dignidade da pessoa humana, constitucionalmente
consagrada.
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* Ricardo Gesteira Ramos e Almeida é advogado do escritório Deda LLG Advogados.
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