Pseudodireito
Carlos Harten
O
povo brasileiro vive uma crise de litigância. O Judiciário virou
lugar-comum que todos buscam por tudo e por nada. Milhares de indivíduos
— em sua maioria, consumidores — têm proposto diariamente ações nas
quais reclamam por questiúnculas que todas as sociedades, em maior ou
menor medida, desenvolvidas ou não, sempre enfrentaram e são tratadas
como aborrecimentos normais do cotidiano. Há, por exemplo, milhares de
ações em que clientes pleiteiam indenização por danos morais fundados na
espera em fila de banco; dificuldade em conseguir sinal de telefone
celular; pequeno atraso de voo ou de entrega de produto comprado através
da internet; e até por ônibus que não parou ao aceno do passageiro.
Sem dúvida, essas
situações são irritantes e, no extremo, estressantes, mas será que
causam abalo psicológico, dor psíquica, elementos estes essenciais para
surgir juridicamente o dano moral? Viviam então nossos pais em
permanente opressão mental na era da rudimentar telefonia fixa? Se a
resposta for positiva, não me assustarei, assim, quando o nosso
Judiciário se abarrotar de pedidos indenizatórios contra a prefeitura ou
o Estado, pelas horas perdidas no trânsito do Recife. Mas, também em
Londres, Nova York e Roma, o trânsito não é terrível? Lá seria
incogitável o cabimento desse pleito indenizatório por mero
aborrecimento, mas aqui cada vez mais advogados têm em sua carteira
processos como esses. Certamente não estou me referindo às condutas dos
diversos fornecedores de produtos e serviços que extrapolam a paciência
do maior dos monges, causando real dano imaterial pela falta de
qualidade em suas atuações. Nesses casos mais graves, não banais, que
não são mero aborrecimento, deve o ofensor indenizar o dano causado a
seu cliente.
Por trás da
crescente litigância descrita, não está, a meu ver, uma
hipersensibilidade do povo brasileiro, mas um criticável interesse
especulativo. Fomentadas por um crescente batalhão de mais de 60 mil
advogados que são lançados todo ano no mercado, várias pessoas são
seduzidas por maus profissionais no intuito de obter lucro fácil através
de indenizações por dano moral contra empresas. De um lado, há
advogados procurando espaço em um mercado já competitivo; do outro, o
Judiciário, que tem sido instrumento de uma máquina financeira; e, por
fim, muitos cidadãos que torcem por sofrer algum aborrecimento contra
uma grande empresa para fazer um extra. Esses ingredientes formam a
indústria dos danos morais. A prova mais evidente disso é vermos ações
distribuídas literalmente aos milhares, de forma padronizada, em que os
autores narram histórias absolutamente idênticas, letra a letra, mudando
apenas o nome das pretensas vítimas. Isso ocorre porque, em vez de as
pessoas que se sentiram ofendidas em seus direitos procurarem advogados
para examinar a situação potencialmente danosa, alguns desses bacharéis
têm procurado o público em geral, ofertando a possibilidade do lucro
fácil. Não são raros os casos de advogados distribuindo panfletos em
locais públicos, oferecendo serviços e contratando intermediários que
recebem comissão por cliente angariado.
A OAB tem
heroicamente combatido essas situações, mas, sem a colaboração do
Judiciário, separando casos de real lesão a direitos de demandas
especulativas, não é possível estancar essa indústria. O principal
perdedor não são as empresas, já que estas terminam incorporando os
custos e as perdas a seus preços, mas a própria sociedade, seja porque
passará a consumir produtos com o custo judiciário embutido, seja porque
precisará entrar em uma longa fila de processos, abarrotada pelos
pseudodireitos pendentes de julgamento, para ver seu conflito resolvido.
E você, já propôs sua ação de hoje?
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* Carlos Harten é sócio-diretor do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia, conselheiro estadual titular da OAB/PE e secretário-geral do Instituto dos Advogados de Pernambuco.
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