sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Pseudodireito

Pseudodireito

Carlos Harten

O povo brasileiro vive uma crise de litigância. O Judiciário virou lugar-comum que todos buscam por tudo e por nada. Milhares de indivíduos — em sua maioria, consumidores — têm proposto diariamente ações nas quais reclamam por questiúnculas que todas as sociedades, em maior ou menor medida, desenvolvidas ou não, sempre enfrentaram e são tratadas como aborrecimentos normais do cotidiano. Há, por exemplo, milhares de ações em que clientes pleiteiam indenização por danos morais fundados na espera em fila de banco; dificuldade em conseguir sinal de telefone celular; pequeno atraso de voo ou de entrega de produto comprado através da internet; e até por ônibus que não parou ao aceno do passageiro.
Sem dúvida, essas situações são irritantes e, no extremo, estressantes, mas será que causam abalo psicológico, dor psíquica, elementos estes essenciais para surgir juridicamente o dano moral? Viviam então nossos pais em permanente opressão mental na era da rudimentar telefonia fixa? Se a resposta for positiva, não me assustarei, assim, quando o nosso Judiciário se abarrotar de pedidos indenizatórios contra a prefeitura ou o Estado, pelas horas perdidas no trânsito do Recife. Mas, também em Londres, Nova York e Roma, o trânsito não é terrível? Lá seria incogitável o cabimento desse pleito indenizatório por mero aborrecimento, mas aqui cada vez mais advogados têm em sua carteira processos como esses. Certamente não estou me referindo às condutas dos diversos fornecedores de produtos e serviços que extrapolam a paciência do maior dos monges, causando real dano imaterial pela falta de qualidade em suas atuações. Nesses casos mais graves, não banais, que não são mero aborrecimento, deve o ofensor indenizar o dano causado a seu cliente.
Por trás da crescente litigância descrita, não está, a meu ver, uma hipersensibilidade do povo brasileiro, mas um criticável interesse especulativo. Fomentadas por um crescente batalhão de mais de 60 mil advogados que são lançados todo ano no mercado, várias pessoas são seduzidas por maus profissionais no intuito de obter lucro fácil através de indenizações por dano moral contra empresas. De um lado, há advogados procurando espaço em um mercado já competitivo; do outro, o Judiciário, que tem sido instrumento de uma máquina financeira; e, por fim, muitos cidadãos que torcem por sofrer algum aborrecimento contra uma grande empresa para fazer um extra. Esses ingredientes formam a indústria dos danos morais. A prova mais evidente disso é vermos ações distribuídas literalmente aos milhares, de forma padronizada, em que os autores narram histórias absolutamente idênticas, letra a letra, mudando apenas o nome das pretensas vítimas. Isso ocorre porque, em vez de as pessoas que se sentiram ofendidas em seus direitos procurarem advogados para examinar a situação potencialmente danosa, alguns desses bacharéis têm procurado o público em geral, ofertando a possibilidade do lucro fácil. Não são raros os casos de advogados distribuindo panfletos em locais públicos, oferecendo serviços e contratando intermediários que recebem comissão por cliente angariado.
A OAB tem heroicamente combatido essas situações, mas, sem a colaboração do Judiciário, separando casos de real lesão a direitos de demandas especulativas, não é possível estancar essa indústria. O principal perdedor não são as empresas, já que estas terminam incorporando os custos e as perdas a seus preços, mas a própria sociedade, seja porque passará a consumir produtos com o custo judiciário embutido, seja porque precisará entrar em uma longa fila de processos, abarrotada pelos pseudodireitos pendentes de julgamento, para ver seu conflito resolvido. E você, já propôs sua ação de hoje?
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* Carlos Harten é sócio-diretor do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia, conselheiro estadual titular da OAB/PE e secretário-geral do Instituto dos Advogados de Pernambuco.

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