Estamos longe de superar os preconceitos do cotidiano
Com
a morte de Nelson Mandela, no útimo dia 5 de dezembro, várias
reportagens sobre sua história tem sido publicadas. Mensagens com suas
frases mais famosas tem sido compartilhadas intensamente nas redes
sociais.
Enquanto lia as muitas matérias e posts que lamentavam a partida de Mandela, fiquei a pensar em nosso preconceito de cada dia, e no quanto estamos dispostos a seguir, em todos os níveis e dimensões, aquilo que líder sul-africano defendia.
Nossa sociedade é preconceituosa. Não me refiro apenas ao racismo. Há, entre nós, várias ordens veladas de preconceito. Quando trato de preconceito, não faço alusão apenas a “conceito prévio”, nem à discriminação, embora tudo isso se relacione. Refiro-me a preconceito marcado pelo cinismo, como disfarce para o ódio bem comportado, ou humilhação justificada, ou aversão irracional bem explicada, e por aí vai.
É o preconceito que permite que se olhe o “diferente” de maneira diferente e aversiva, que justifica a separação, que “explica” porque é certo ficar longe de quem é diferente ( “inferior” a você). É o preconceito que autoriza humilhar o mais fraco, que ordena a violência contra quem ou o que é não é igual.
Há, além de preconceito racial ou sexual, também, dentre tantos exemplos, o preconceito contra aquele de origem pobre, que justifica que vivamos em um apartheid social.[1]
A lei, não raro, é complacente com isso. Devemos atuar para que desapareçam as desigualdades geradas na lei, evidentemente.[2] Mas não podemos silenciar enquanto ainda houver desigualdade perante a lei.
Veja-se, por exemplo, o preconceito contra pessoas portadoras de deficiência. A regra prevista no artigo 208, III da Constituição estabelece que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. A meu ver, a garantia prevista no artigo 208, III abrange qualquer deficiência, aí incluídos os mais variados transtornos psiquiátricos, ainda que não especificados na Lei 9.394/2006, recentemente atualizada pela Lei 12.796/2013.[3] O texto constitucional, e as leis que o esmiúçam, vem sendo observado?
Nem sempre. Prepondera, entre nós, a ideia de que alunos que precisem atenção devem ser, de algum modo, “segregados”. Nem todas as escolas aceitam alunos que precisem de um cuidado especial. É o que revelam os variados casos julgados pelo Judiciário.[4] De fato, estamos longe de alcançar o desiderato constitucional.
Em outros casos, não obstante haver previsão normativa, e chegar a haver reconhecimento, ao final, do direito, a causa tramita por tempo nada razoável — o que acaba por significar, ao final, muito mais que o adiamento da tutela jurisdicional. É o que revela caso recentemente julgado pelo Supremo Tribunal Federal.
Não raro, deparamo-nos com edifícios ou áreas públicas que dificultam a locomoção de pessoas portadoras de deficiência. Isso ocorre, inclusive, em escolas. Recentemente, decidiu o STF que o estado de São Paulo deveria adaptar escola para alunos com deficiência.[5] Há algo de curioso no caso referido, contudo: o recurso extraordinário foi provido — o que, sem dúvida, representa uma vitória —, mas tramitou no Supremo Tribunal Federal desde 2005. Não deixa de ser um desalento. Quando casos graves como esse são finalmente resolvidos através da intervenção judicial, o são muito tardiamente.
Enquanto lia as muitas matérias e posts que lamentavam a partida de Mandela, fiquei a pensar em nosso preconceito de cada dia, e no quanto estamos dispostos a seguir, em todos os níveis e dimensões, aquilo que líder sul-africano defendia.
Nossa sociedade é preconceituosa. Não me refiro apenas ao racismo. Há, entre nós, várias ordens veladas de preconceito. Quando trato de preconceito, não faço alusão apenas a “conceito prévio”, nem à discriminação, embora tudo isso se relacione. Refiro-me a preconceito marcado pelo cinismo, como disfarce para o ódio bem comportado, ou humilhação justificada, ou aversão irracional bem explicada, e por aí vai.
É o preconceito que permite que se olhe o “diferente” de maneira diferente e aversiva, que justifica a separação, que “explica” porque é certo ficar longe de quem é diferente ( “inferior” a você). É o preconceito que autoriza humilhar o mais fraco, que ordena a violência contra quem ou o que é não é igual.
Há, além de preconceito racial ou sexual, também, dentre tantos exemplos, o preconceito contra aquele de origem pobre, que justifica que vivamos em um apartheid social.[1]
A lei, não raro, é complacente com isso. Devemos atuar para que desapareçam as desigualdades geradas na lei, evidentemente.[2] Mas não podemos silenciar enquanto ainda houver desigualdade perante a lei.
Veja-se, por exemplo, o preconceito contra pessoas portadoras de deficiência. A regra prevista no artigo 208, III da Constituição estabelece que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. A meu ver, a garantia prevista no artigo 208, III abrange qualquer deficiência, aí incluídos os mais variados transtornos psiquiátricos, ainda que não especificados na Lei 9.394/2006, recentemente atualizada pela Lei 12.796/2013.[3] O texto constitucional, e as leis que o esmiúçam, vem sendo observado?
Nem sempre. Prepondera, entre nós, a ideia de que alunos que precisem atenção devem ser, de algum modo, “segregados”. Nem todas as escolas aceitam alunos que precisem de um cuidado especial. É o que revelam os variados casos julgados pelo Judiciário.[4] De fato, estamos longe de alcançar o desiderato constitucional.
Em outros casos, não obstante haver previsão normativa, e chegar a haver reconhecimento, ao final, do direito, a causa tramita por tempo nada razoável — o que acaba por significar, ao final, muito mais que o adiamento da tutela jurisdicional. É o que revela caso recentemente julgado pelo Supremo Tribunal Federal.
Não raro, deparamo-nos com edifícios ou áreas públicas que dificultam a locomoção de pessoas portadoras de deficiência. Isso ocorre, inclusive, em escolas. Recentemente, decidiu o STF que o estado de São Paulo deveria adaptar escola para alunos com deficiência.[5] Há algo de curioso no caso referido, contudo: o recurso extraordinário foi provido — o que, sem dúvida, representa uma vitória —, mas tramitou no Supremo Tribunal Federal desde 2005. Não deixa de ser um desalento. Quando casos graves como esse são finalmente resolvidos através da intervenção judicial, o são muito tardiamente.
Deparamo-nos com muitos outros exemplos de
preconceito, em nosso dia a dia, a respeito dos quais o Judiciário vem
sendo chamado a se manifestar. As hipóteses reveladas pela
jurisprudência revelam que ainda temos longo caminho a percorrer, até
conseguirmos tornar, de fato, o que a Constituição prevê, de direito. De
nada adiantará lamentar a morte de Mandela ou celebrar seus feitos, se
não alterarmos nossa práxis.[6]
[1] Há poucos dias, escrevi algo
sobre as desigualdades existentes entre algumas cidades do Estado do
Paraná, fenômeno que deve se repetir em outros Estados do Pais. Cidades
vizinhas tem IDH muito diferentes. Não vejo razões para comemorar o alto
IDH de uma cidade, enquanto aquela nossa cidade vizinha amarga IDH
muito baixo.
[2] Cf., por exemplo, o que escrevi em texto anterior desta coluna. O sistema judicial é seletivo e sacrifica o mais fraco.
[3]
Tenho defendido que a referência expressa, na Lei, a determinados
transtornos, não exclui que educando com transtorno psiquiátrico de
outra natureza seja atendido sob o regime de educação especial (cf. Constituição Federal comentada,2.
ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2013, comentário ao art. 208). A Lei
12.796/2013 atualizou a Lei 9.394/2006, para fazer referência a
educandos com transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades
ou superdotação, dando-lhes o mesmo tratamento assegurados a educandos
com deficiência O art. 4.º, III da Lei 9.394/2006, expressamente,
garante o “atendimento educacional especializado gratuito aos educandos
com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e
modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino”. Cf. também, a
respeito, o que dispõe a Lei 12.764/2012, que institui a Política
Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro
Autista.
[4]
Por exemplo, decidiu-se, à luz do artigo 208, III da Constituição, que
“o adolescente portador de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade) deve ser atendido sob regime de educação especial, e não
pode ter seu curso acadêmico obstaculizado pela avaliação docente não
especializada. Incidência dos arts. 206, I e 208, III da Constituição
Federal, do art. 12, V da Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases) e da
Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiência”. No caso,
determinou-se à instituição de ensino “a apuração do aproveitamento
escolar do menor, não de forma retilínea, como o faz com todos os demais
alunos que não padecem de transtornos psiquiátricos, mas sim com o
balanceamento de quem está tratando um adolescente portador do distúrbio
diagnosticado como Transtorno de Atenção e Hiperatividade (TDAH), a
quem a própria escola negligenciou um atendimento adequado, em tempo
hábil para viabilizar o regular curso do aluno nas atividades escolares,
mirando obediência ao princípio da proteção integral, orientador do
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.068/90)” (TRF 5.ª Reg.,
AgReg em AgIn 20060500053360201, rel. Des. Ivan Lira de Carvalho, j.
31.10.2006).
[5] Notícia disponível aqui.
Consta, do voto condutor do acórdão: “Assentada a natureza
constitucional da política pública de acessibilidade, necessariamente a
ser implementada pelos demais Poderes Públicos, decorre do conjunto
normativo a existência do direito subjetivo público de adequação dos
edifícios e áreas públicas visando possibilitar a livre locomoção de
portadores de necessidades especiais. É ele qualificado, quando se trata
de escola pública, cujo acesso surge primordial ao pleno
desenvolvimento da pessoa, consoante proclama o artigo 205 da Carta
Federal. O artigo 206, inciso I, dela constante assegura a igualdade de
condições para a permanência na escola. Barreiras arquitetônicas que
impeçam a locomoção de pessoas acarretam inobservância a regra
constitucional, colocando cidadãos em desvantagem no tocante à
coletividade. A imposição quanto à acessibilidade aos prédios públicos é
reforçada pelo direito à cidadania, ao qual têm jus os portadores de
necessidades especiais. A noção de república pressupõe que a gestão
pública seja efetuada por delegação e no interesse da sociedade e,
nesta, aqueles estão integrados. Obstaculizar-lhes a entrada em
hospitais, escolas, bibliotecas, museus, estádios, em suma, edifícios de
uso público e áreas destinadas ao uso comum do povo, implica tratá-los
como cidadãos de segunda classe, ferindo de morte o direito à igualdade e
à cidadania” (STF, RE 440.028-SP, rel. Min. Marco Aurélio, 1.ª T., j.
29.10.2013).
José Miguel Garcia Medina é
doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas
nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de
Processo Civil.
Revista Consultor Jurídico, 9 de dezembro de 2013
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