segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Superação de preconceitos


Estamos longe de superar os preconceitos do cotidiano

Com a morte de Nelson Mandela, no útimo dia 5 de dezembro, várias reportagens sobre sua história tem sido publicadas. Mensagens com suas frases mais famosas tem sido compartilhadas intensamente nas redes sociais.
Enquanto lia as muitas matérias e posts que lamentavam a partida de Mandela, fiquei a pensar em nosso preconceito de cada dia, e no quanto estamos dispostos a seguir, em todos os níveis e dimensões, aquilo que líder sul-africano defendia.
Nossa sociedade é preconceituosa. Não me refiro apenas ao racismo. Há, entre nós, várias ordens veladas de preconceito. Quando trato de preconceito, não faço alusão apenas a “conceito prévio”, nem à discriminação, embora tudo isso se relacione. Refiro-me a preconceito marcado pelo cinismo, como disfarce para o ódio bem comportado, ou humilhação justificada, ou aversão irracional bem explicada, e por aí vai.
É o preconceito que permite que se olhe o “diferente” de maneira diferente e aversiva, que justifica a separação, que “explica” porque é certo ficar longe de quem é diferente ( “inferior” a você). É o preconceito que autoriza humilhar o mais fraco, que ordena a violência contra quem ou o que é não é igual.
Há, além de preconceito racial ou sexual, também, dentre tantos exemplos, o preconceito contra aquele de origem pobre, que justifica que vivamos em um apartheid social.[1]
A lei, não raro, é complacente com isso. Devemos atuar para que desapareçam as desigualdades geradas na lei, evidentemente.[2] Mas não podemos silenciar enquanto ainda houver desigualdade perante a lei.
Veja-se, por exemplo, o preconceito contra pessoas portadoras de deficiência. A regra prevista no artigo 208, III da Constituição estabelece que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. A meu ver, a garantia prevista no artigo 208, III abrange qualquer deficiência, aí incluídos os mais variados transtornos psiquiátricos, ainda que não especificados na Lei 9.394/2006, recentemente atualizada pela Lei 12.796/2013.[3] O texto constitucional, e as leis que o esmiúçam, vem sendo observado?
Nem sempre. Prepondera, entre nós, a ideia de que alunos que precisem atenção devem ser, de algum modo, “segregados”. Nem todas as escolas aceitam alunos que precisem de um cuidado especial. É o que revelam os variados casos julgados pelo Judiciário.[4] De fato, estamos longe de alcançar o desiderato constitucional.
Em outros casos, não obstante haver previsão normativa, e chegar a haver reconhecimento, ao final, do direito, a causa tramita por tempo nada razoável — o que acaba por significar, ao final, muito mais que o adiamento da tutela jurisdicional. É o que revela caso recentemente julgado pelo Supremo Tribunal Federal.
Não raro, deparamo-nos com edifícios ou áreas públicas que dificultam a locomoção de pessoas portadoras de deficiência. Isso ocorre, inclusive, em escolas. Recentemente, decidiu o STF que o estado de São Paulo deveria adaptar escola para alunos com deficiência.[5] Há algo de curioso no caso referido, contudo: o recurso extraordinário foi provido — o que, sem dúvida, representa uma vitória —, mas tramitou no Supremo Tribunal Federal desde 2005. Não deixa de ser um desalento. Quando casos graves como esse são finalmente resolvidos através da intervenção judicial, o são muito tardiamente.
Deparamo-nos com muitos outros exemplos de preconceito, em nosso dia a dia, a respeito dos quais o Judiciário vem sendo chamado a se manifestar. As hipóteses reveladas pela jurisprudência revelam que ainda temos longo caminho a percorrer, até conseguirmos tornar, de fato, o que a Constituição prevê, de direito. De nada adiantará lamentar a morte de Mandela ou celebrar seus feitos, se não alterarmos nossa práxis.[6]

[1] Há poucos dias, escrevi algo sobre as desigualdades existentes entre algumas cidades do Estado do Paraná, fenômeno que deve se repetir em outros Estados do Pais. Cidades vizinhas tem IDH muito diferentes. Não vejo razões para comemorar o alto IDH de uma cidade, enquanto aquela nossa cidade vizinha amarga IDH muito baixo.
[2] Cf., por exemplo, o que escrevi em texto anterior desta coluna. O sistema judicial é seletivo e sacrifica o mais fraco.
[3] Tenho defendido que a referência expressa, na Lei, a determinados transtornos, não exclui que educando com transtorno psiquiátrico de outra natureza seja atendido sob o regime de educação especial (cf. Constituição Federal comentada,2. ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2013, comentário ao art. 208). A Lei 12.796/2013 atualizou a Lei 9.394/2006, para fazer referência a educandos com transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, dando-lhes o mesmo tratamento assegurados a educandos com deficiência O art. 4.º, III da Lei 9.394/2006, expressamente, garante o “atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino”. Cf. também, a respeito, o que dispõe a Lei 12.764/2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
[4] Por exemplo, decidiu-se, à luz do artigo 208, III da Constituição, que “o adolescente portador de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) deve ser atendido sob regime de educação especial, e não pode ter seu curso acadêmico obstaculizado pela avaliação docente não especializada. Incidência dos arts. 206, I e 208, III da Constituição Federal, do art. 12, V da Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases) e da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiência”. No caso, determinou-se à instituição de ensino “a apuração do aproveitamento escolar do menor, não de forma retilínea, como o faz com todos os demais alunos que não padecem de transtornos psiquiátricos, mas sim com o balanceamento de quem está tratando um adolescente portador do distúrbio diagnosticado como Transtorno de Atenção e Hiperatividade (TDAH), a quem a própria escola negligenciou um atendimento adequado, em tempo hábil para viabilizar o regular curso do aluno nas atividades escolares, mirando obediência ao princípio da proteção integral, orientador do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.068/90)” (TRF 5.ª Reg., AgReg em AgIn 20060500053360201, rel. Des. Ivan Lira de Carvalho, j. 31.10.2006).
[5] Notícia disponível aqui. Consta, do voto condutor do acórdão: “Assentada a natureza constitucional da política pública de acessibilidade, necessariamente a ser implementada pelos demais Poderes Públicos, decorre do conjunto normativo a existência do direito subjetivo público de adequação dos edifícios e áreas públicas visando possibilitar a livre locomoção de portadores de necessidades especiais. É ele qualificado, quando se trata de escola pública, cujo acesso surge primordial ao pleno desenvolvimento da pessoa, consoante proclama o artigo 205 da Carta Federal. O artigo 206, inciso I, dela constante assegura a igualdade de condições para a permanência na escola. Barreiras arquitetônicas que impeçam a locomoção de pessoas acarretam inobservância a regra constitucional, colocando cidadãos em desvantagem no tocante à coletividade. A imposição quanto à acessibilidade aos prédios públicos é reforçada pelo direito à cidadania, ao qual têm jus os portadores de necessidades especiais. A noção de república pressupõe que a gestão pública seja efetuada por delegação e no interesse da sociedade e, nesta, aqueles estão integrados. Obstaculizar-lhes a entrada em hospitais, escolas, bibliotecas, museus, estádios, em suma, edifícios de uso público e áreas destinadas ao uso comum do povo, implica tratá-los como cidadãos de segunda classe, ferindo de morte o direito à igualdade e à cidadania” (STF, RE 440.028-SP, rel. Min. Marco Aurélio, 1.ª T., j. 29.10.2013).
[6] Mutatis mutandis, trata-se de algo parecido com o que disse o Papa Francisco: “dizer palavras cristãs sem executá-las faz mal” (no original, “pronunciare parole cristiane senza attuarle fa male”; cf. reportagem disponível aqui).
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. 
Revista Consultor Jurídico, 9 de dezembro de 2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário