quarta-feira, 9 de outubro de 2013

ENADE

Enade: perdas e ganhos

Após três ciclos avaliativos, Ensino Superior fez um balanço do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes para saber como evoluiu a aferição de desempenho de alunos e de que maneira influencia a educação brasileira
por Renata Melo
154Em 2004, por meio da Lei 10.861/2004, o governo federal criou o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), tendo como um de seus elementos o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), que substituiu o Exame Nacional de Cursos, antigo Provão. De lá para cá criou-se uma cultura da avaliação no setor e hoje é possível ter uma ideia sobre como anda o aprendizado dos estudantes universitários no país e ter indicadores e insumos para uma visão geral sobre a qualidade e o aproveitamento do ensino superior brasileiro.
É por meio dos resultados do Enade que são construídos os indicadores de qualidade da educação superior, utilizados pelo Ministério da Educação para a regulação e pelas instituições para promover ações de planejamento e revisão dos projetos pedagógicos dos cursos. Porém a utilização da nota dos alunos transformada no Conceito Enade, que compõe o sistema de avaliação das instituições, é questionada por especialistas como forma adequada para medir a qualidade do ensino e para gratificar ou punir cursos ou estudantes com base nos resultados. Será que o mau desempenho dos alunos na avaliação necessariamente reflete um ensino de má qualidade?
Fórmula inadequada
Na opinião do professor Romualdo Portela, do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), o Enade traz em si um problema conceitual. “Temos um instrumento só para duas finalidades diferentes. De um lado, a regulação por parte do governo, de outro, a avaliação como feedback para o aperfeiçoamento dos cursos”, considera.
Pelo que chama de vício de origem, o professor da USP não acredita que seja possível nortear políticas públicas a partir dos resultados das provas do Enade. Ele sugere que muitas instituições preocupam-se apenas em se ajustar às exigências mínimas do MEC para continuar funcionando. “Nesse caso, penso que seriam necessários mecanismos de controle mais claros”, afirma. Portela também vê problemas quanto ao uso dos resultados como base para aperfeiçoamento do ensino superior. “Não funciona. O modelo é mal desenhado, teria de ser pensado um outro formato”, indica.
Portela critica ainda o fato de o Enade avaliar somente um componente do processo, que é o aprendizado do aluno. “Não se levam em conta, por exemplo, o perfil do corpo docente, a infraestrutura, o projeto pedagógico e diferenças socioeconômicas dos estudantes”, analisa.
Outro ponto da avaliação posto à prova por educadores é a aferição apenas da habilitação teórica e não da prática, necessária a alguns cursos como artes visuais, arquitetura e medicina, como destaca Ana Maria Souza, vice-presidente Acadêmica da Anhanguera Educacional. “Os procedimentos necessários para o bom desempenho de um enfermeiro não são avaliados. O principal foco do Enade é a avaliação teórica das competências da carreira”, reforça.
Testes versus currículo
Uma crítica ao modelo padronizado de provas e gratificação ou punição por desempenho ganha força no livro The death and life of great American school (ainda não publicado no Brasil), em que a educadora norte-americana Diane Ravitch analisa o sistema de ensino nos Estados Unidos. De apoiadora das políticas de avaliação do sistema de ensino nos anos 90, hoje ela defende outro tipo de sistema avaliativo. Ela mantém o blog Bridging Differences (http://blogs.edweek.org/edweek/Bridging-Differences), em que se posiciona contra o uso dos testes padronizados.
A educadora afirma, numa entrevista à revista Educação de abril, que esse tipo de prova testa apenas habilidades e não conhecimento. Para ela, os testes não exigem a capacidade de pensar, mas sim de pensar para aquele exame. “O maior problema é que, atualmente, são mais importantes que o currículo e acabaram se tornando fins em si mesmos. Aqueles que não passam nas provas são estigmatizados, julgados, classificados e considerados fracassados”, destaca.
Culpar escolas e professores caso os resultados das provas sejam insatisfatórios, segundo Diane Ravitch, também não é correto. “Mais professores serão demitidos com base nas provas e mais escolas serão fechadas. O sistema de accountability expandiu uma demanda por punição, e o alvo são os docentes, seus sindicatos, seu tempo de serviço e direito de estabilidade no emprego”, acredita.
Para ela, o melhor método para medir a habilidade de um aluno é o próprio trabalho desenvolvido por ele, não apenas um teste padronizado de múltipla escolha. “Uma medida melhor seria a qualidade da redação do aluno, seus projetos de ciências, de pesquisa em questões de história e a habilidade demonstrada para resolver problemas de matemática.” Na visão da educadora, uma educação de qualidade é aquela que desenvolve o pensamento crítico e prepara o aluno para receber mais conhecimento, para ter uma carreira, para a cidadania e para interagir com a sociedade por toda a vida.
A visão da educadora norte-americana não tem respaldo na Diretoria de Avaliação da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Para a diretora do instituto Claudia Maffini Griboski, não há como considerar que o Enade avalie apenas habilidades ou que não exija a capacidade de pensar, já que traz em si uma concepção inclusiva e abrangente. Ela defende que o exame tem se firmado como elemento de avaliação da qualidade da oferta dos cursos de graduação. “É importante ressaltar que o Enade avalia o curso e não o estudante, e que sua realização compreende, além da prova, dois questionários que permitem o levantamento do perfil do participante. A concepção do Enade abrange o acompanhamento do processo de aprendizagem e desempenho dos estudantes em relação aos conteúdos programáticos previstos nas DCNs [Diretrizes Curriculares Nacionais]”, afirma.
Segundo a diretora do Inep, os instrumentos utilizados no exame são construí­dos coletivamente por especialistas da área, que atuam como docentes na educação superior. “Essas comissões são responsáveis pela determinação dos conhecimentos, saberes e habilidades a serem avaliadas e todas as especificações necessárias à elaboração da prova a ser aplicada pelo Enade”, diz a diretora.
Evolução das médias
Com base nos resultados dos conceitos do Enade divulgados pelo Ministério da Educação, a reportagem de Ensino Superior acompanhou como evoluíram as médias dos cursos avaliados pelo Enade nos três primeiros ciclos avaliativos: 2004 e 2007; 2005 e 2008; 2006 e 2009. Dos cursos avaliados de 2004 a 2009, foram considerados apenas os 45 cursos que encerraram seu ciclo avaliativo. Nesse período, 25 tiveram aumento na média de conhecimentos específicos na prova feita pelos concluintes e somente dois mantiveram médias estáveis. Por outro lado, um número considerável de cursos (18) verificou queda do conceito médio de uma etapa para a outra do ciclo avaliativo.
Na opinião de Ana Maria Souza, nem sempre as médias do Enade refletem com precisão o conhecimento adquirido pelo aluno. “Tanto o boicote quanto o descompromisso de alguns alunos influenciam na média. Muitos estudantes nem comparecem à prova e outros, quando se dispõem a fazer o teste, preocupam-se apenas em cumprir o tempo mínimo, entregando somente metade da prova feita”, lembra ela. “Como esta nota não constará de seu histórico escolar, dão pouca importância. Muitos esquecem, no entanto, que alguns empregadores poderão olhar o conceito Enade de sua instituição para decidir-se por uma contratação ou não”, afirma.
A educadora americana Diane Ravitch também alerta para o risco de fraudes, principalmente quando há alta dependência dos resultados e quando instituições sabem que podem ser gratificadas ou punidas. “O melhor jeito de evitar isso é parar de atrelar altas expectativas às provas e usá-las apenas para propósitos de diagnóstico, não para responsabilizar, bonificar ou punir”, pondera.
O prejuízo à nota da instituição por conta de eventuais protestos de estudantes na realização do exame é minimizado pelo Inep. Na visão de Claudia Griboski, esse é um tema que deve ser tratado pontualmente com uma análise da motivação que levou os estudantes a protestarem. Ela explica que, segundo relatórios do Inep, o índice de estudantes que entregam provas rasuradas ou em branco não é significativo para afetar o desempenho da instituição. Claudia diz que para garantir a participação efetiva dos estudantes no Enade, o Inep trabalha em conjunto com as instituições de ensino no esclarecimento da importância do exame para a avaliação dos cursos e das instituições.
Ela cita como exemplo desse esforço a realização dos Seminários do Enade que acontecem anualmente desde 2009, com ampla participação dos coordenadores de cursos e demais gestores das instituições. Outra ação fundamental para ampliação da participação dos estudantes no Enade, segundo Claudia, é o estabelecimento de parceria entre as instituições e seus estudantes, por meio de ações de sensibilização e conscientização sobre a importância da avaliação para a qualidade da educação superior no Brasil.
A diretora lembra, ainda, que o Inep lançou recentemente uma publicação que traz uma análise do primeiro ciclo avaliativo do Sinaes, visando realizar uma meta-avaliação e acompanhar o processo de avaliação em cada ciclo avaliativo. A publicação analisa as áreas das Ciências da Saúde, Ciências Agrárias e Serviço Social e está disponível no portal do Inep (www.inep.gov.br), em três volumes que contêm a análise dos resultados do Enade de 2004 e 2007, a caracterização dos cursos a partir da obtenção do CPC em 2008 e a análise dos relatórios de autoavaliação das Comissões Próprias de Avaliação (CPAs) das instituições.
Valor agregado
Representantes das instituições de ensino reconhecem que o Enade agregou valor à avaliação discente, em relação ao Provão, especialmente porque ampliou o número de cursos abrangidos. Isso se deve ao fato de que o Provão era organizado de forma a avaliar os mesmos cursos todos os anos sem, no entanto, avaliar todos os existentes. “Com o Enade, quase todos os cursos são avaliados em um ciclo trienal, o que permite abranger um número consideravelmente maior. Deixam de ser avaliados aqueles que não possuem Diretriz Curricular e os que têm pouca representatividade no Brasil”, explica Ana Maria Souza. Outro benefício do Enade, segundo ela, é a avaliação feita não somente com o estudante concluinte, mas também com o ingressante, o que estabelece um parâmetro para aferir o quanto o curso agrega à formação do estudante.
Embora concorde que a avaliação seja um processo irreversível na identificação e promoção da qualidade de uma instituição de ensino, a especialista pondera que problemas aparecem quando se analisa o tratamento dado ao Enade no momento de fazer a composição do Conceito Preliminar de Curso (CPC). Ela explica que a fórmula utilizada acaba prejudicando a nota dos cursos mesmo com boa avaliação dos estudantes no exame. “Isso ocorre quando alunos de determinados cursos alcançam os conceitos 5 no Enade e 4 ou 5 no IDD, mas, se a instituição não possui 20% de professores com doutorado, o resultado final dos cursos cai para 3 no CPC”, lamenta.
A diretora de Avaliação da Educação Superior do Inep sugere que as instituições de ensino utilizem o Enade também como forma de diagnóstico de suas ações. “Como elemento constitutivo do Sinaes, o exame precisa ser mais bem explorado pelas instituições de educação superior, não somente como prática obrigatória, mas principalmente como diagnóstico da própria ação”, ressalta.
Críticas a parte, a vice-diretora Acadêmica da Anhanguera considera que o uso do Enade e os processos avaliativos foram fortalecidos com a Lei do Sinaes. “Todos ficaram satisfeitos, uma vez que a avaliação da educação superior brasileira adquiriu um caráter sistêmico, que integra procedimentos e instrumentos diversificados, possibilitando, dessa forma, a consolidação da qualidade da educação superior”, ressalta Ana Maria.
Responsabilização por resultados
Os sistemas de accountability como uma política de melhoria dos resultados da educação, implantados inicialmente na Inglaterra a partir dos anos de 1980, se baseiam na responsabilização de gestores e professores pelo desempenho e resultados das escolas. De defensora do sistema, Diane Ravitch passou a ter um olhar mais crítico sobre o uso de testes padronizados para avaliar o ensino e, a partir deles, penalizar ou bonificar instituições e alunos. Hoje ela considera errôneo culpar escolas e professores por resultados insatisfatórios nas provas realizadas pelos estudantes. Ela lamenta que o sistema tenha se voltado à punição sistemática. “Mais professores serão demitidos com base nas provas e mais escolas serão fechadas. O sistema de accountability expandiu uma demanda por punição, e o alvo são os docentes, seus sindicatos, seu tempo de serviço e direito de estabilidade no emprego”, acredita.

Atenção aos prazos
Em 2011, as provas acontecem no dia 6 de novembro e até lá instituições e alunos têm uma série de procedimentos a cumprir, de acordo com a Portaria Normativa nº 8, de 15/04/2011, que regulamenta o Exame este ano.
Uma das novidades é a dispensa dos ingressantes, que a partir de agora serão avaliados com base na nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Todos os alunos, porém, devem ser inscritos normalmente, para efeito de cadastro. Ficará a cargo do Inep informar quais estudantes estarão dispensados do Enade.
O Semesp orienta as instituições para que inscrevam todos os alunos do cadastro de matriculados nos cursos avaliados em 2011, mesmo que tenha havido evasão ou trancamento de matrícula, já que a situação inversa pode acarretar a cassação da autorização de funcionamento da instituição ou mesmo um processo judicial por parte de alunos que venham a ficar em situação irregular no Enade e fiquem impedidos de colar grau.
O Inep recomenda que gestores, coordenadores de cursos e os próprios estudantes consultem o Manual do Enade, disponível no site http://portal.inep.gov.br/manual-do-enade.

“Por uma avaliação de verdade”
Esse é o mote da campanha de boicote ao Enade, realizada pelo movimento estudantil, e contra o eixo do Sinaes destinado à avaliação dos estudantes. Segundo a estudante Clara Saraiva, da Comissão Executiva Nacional da Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre (Anel), “o boicote é uma forma de dizer ao governo que não queremos esse tipo de avaliação que não leva em conta a globalidade da formação do estudante e é coercitivo, já que é obrigatório”, reclama Clara, que é aluna da UFRJ. A campanha da Anel orienta que os estudantes compareçam à prova para registrar presença e não serem punidos com a retenção do diploma, mas que o exame seja entregue em branco.
Na opinião de Clara Saraiva, as outras etapas do Sinaes são desiguais e irregulares. “Quando são feitas as visitas dos avaliadores, as análises são superficiais. Eles não consideram a precariedade dos prédios e os baixos salários dos professores, por exemplo”, aponta.
A estudante também tem posicionamento contrário à padronização dos testes. “As provas não levam em consideração as peculiaridades regionais. Um curso de agronomia do Sul não tem as mesmas características de um curso do interior de São Paulo”, diz ela. A líder da Anel enxerga problemas também no uso que se faz dos resultados. “De um lado, o governo dá mais subsídios às instituições com melhores colocações, enquanto as que vão mal são punidas”, lamenta.
Para o coordenador do DCE da Unicamp, André Guerrero, o conteúdo das provas é delimitado de acordo com a visão ideológica do governo. “Podem perder pontos na prova, por exemplo, alunos de um determinado curso de economia com uma orientação que questiona o pagamento da dívida pública defendida pelo governo. Então, a universidade tende a adaptar seus conteúdos ao modelo da prova para obter melhores notas e não sofrer sanções”, analisa.

Ampliação dos usos
Em abril deste ano, as médias do Enade, juntamente com o CPC (Conceito Preliminar de Curso), os relatórios de autoavaliação realizados pelas instituições e o perfil dos egressos, serviram de subsídio para que o Inep iniciasse uma pesquisa para identificar como os formados estão se saindo no mercado de trabalho. De acordo com o órgão, a iniciativa integra o estudo qualitativo do segundo ciclo avaliativo do Sinaes (2005 e 2008) e permite medir pontualmente a evolução dos cursos. A divulgação do estudo está prevista para o segundo semestre deste ano.
A pesquisa foi feita por e-mail ou pela página do Inep na internet, e os participantes deveriam informar, entre outras coisas, como o currículo acadêmico ajudou na formação profissional, podendo sugerir melhorias para o curso estudado.
Outra ação do MEC, divulgada em 2010, foi a concessão de bolsas de estudo aos melhores alunos do Enade em cursos de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) reconhecidos pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Os estudantes que obtiveram as melhores notas no Exame em 2007 e 2008 puderam pleitear bolsas de 24 meses para o mestrado e de 48 para o doutorado nos cursos de pós-graduação, após aprovação no processo seletivo.

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